Estarrecida, mas sem qualquer surpresa, a opinião pública tomou conhecimento do espetáculo grotesco, de picadeiro de circo de aldeia em que foi transformado o Palácio da Alvorada, residência oficial da presidência da república, no último dia 18/07.
Dirigindo-se a cerca de 50 embaixadores, reunidos pela coorte militar e com a conivência do Itamaraty, que enxovalha sua história, o ainda presidente da república denunciou ao mundo que a democracia brasileira, que preside, se sustenta na mentira eleitoral, portanto, no crime e na falsidade ideológica. O processo eleitoral foi por ele reduzido a uma farsa, e a urna eletrônica, de que tanto se orgulha a justiça brasileira, caricaturada como uma engenhoca a serviço da fraude eleitoral, com a qual seria conivente o Tribunal Superior Eleitoral, que se recusa a submeter-se à fiscalização das forças armadas, e essa recusa pode levar a caserna, de quem o capitão se diz chefe supremo, a não reconhecer o resultado das eleições. Bastaria, insinua, um aceno seu, para ser obedecido por uma tropa que reagiria como o cãozinho de Pavlov.
Todas as alegadas denúncias de fragilidade do processo eletrônico levantadas pelo presidente celerado, e repetidas pelo seu ministro da defesa foram, todavia, uma vez mais, e como sempre, sistematicamente desmentidas pela auditoria do Tribunal de Contas, pela polícia federal e, até, pelos arapongas da Abin, órgão subordinado ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, chefiado pelo inefável general Augusto Heleno, ex-ajudante de ordens do gal.
Silvio Frota (aquele que tentou dar um golpe no presidente Geisel, acusando-o de comunista) e recém egresso de bem remunerada mordomia no Comitê Olímpico Brasileiro. As reiteradas mentiras do presidente foram mesmo desautorizadas pela embaixada americana, o que indica que o Tio Sam, desta feita e ao menos até aqui, não está interessado em nova quebra da normalidade institucional, ao contrário do que ocorreu em 1964, quando desempenhou papel decisivo na preparação do golpe militar, e na implantação e sustentação da ditadura. Assim, temos um presidente de república que ataca e desonra o país, que comete crimes em série e goza de impunidade que alimenta sua deformação de caráter, porque, quanto mais se sente inatingível pelas leis do país, mais se anima a desrespeitá-las. Já fez de tudo, até matou, pois foi dolosamente criminosa sua conduta dificultando a defesa da população diante da pandemia da Covid-19. Contam-se em dezenas de milhares de pessoas que conheceram a morte pela desí dia do presidente. Age como um criminoso em série, consciente de que está acima das instituições e das leis.
No espetáculo do Palácio da Alvorada, Bolsonaro agiu com abuso no exercício de função pública, quando difundiu informações falsas e injuriosas a instituições da república e autoridades públicas. Cometeu crime eleitoral fazendo campanha fora do período permitido, em imóvel público e durante o expediente, o que é vedado a funcionários públicos. Abusou do poder de autoridade. Utilizou meios de comunicação estatais em benefício de sua candidatura. Cometeu crime de responsabilidade ao utilizar o poder federal, que chefia, para impedir a livre execuç ão de lei federal. Foram inúmeros os ilícitos eleitorais, cada um por si justificador de processo de responsabilidade, de decretação de inelegibilidade ou, amanhã, de impedimento do registro de candidatura. Até o momento, porém, não se conhecem providências objetivas das autoridades dos diversos poderes visando a deter o facínora, que não será contido pela força de declarações, de notas de repúdio, de protestos que se perdem no ar. Continua perigosamente à solta. A seus ataques, a suas mentiras, a resposta da justiça eleitoral se limita aos discursos de abade do ministro Edson Fachin.
Até quando?
E o que ainda espera o país para reagir aos insultos e às ostensivas maquinações golpistas? Esperar que o meliante tenha sucesso para então reagir? Ou levantar-se, como se levantou o país quando, em 1961, os ministros militares anunciaram o golpe que era o impedimento da posse de João Goulart?
Uma vez mais nos assalta o descompromisso das forças armadas com os interesses nacionais e a democracia. Trata-se, aliás, de um descompromisso histórico. Desta feita alegadas e sempre falsas razões politicas e ideológicas são substituídas pela política menor: o gozo do poder pelo poder. Não podem mais, como em 1964, arguir o anticomunismo de fancaria com o qual escondiam seu horror aos interesses das grandes massas espoliadas e seu desinteressa pela afirmação de nossa soberania e de nossa dignidade: o direito de ter um projeto próprio de país; também não podem mais alegar os deve res decorrentes da aderência subalternizada aos EUA numa Guerra Fria que terminou nos anos 90 do século passado, e com a qual nada tínhamos a ver. Não podem, como fizeram aleivosamente contra Jango, acusar o governo de conspirar contra a Constituição, porque elas é que são o governo. Nada podem alegar em defesa do golpismo, além de puro fisiologismo, o usufruto de privilégios antirrepublicanos, o gozo de mordomias, sinecuras e vilegiaturas. E não podem alegar surpresa quanto ao caráter do presidente, pois foram elas que o formaram, como igualmente formaram o brigadeiro Burnier, o general Silvio Frota, o cel. Ustra e um número sem conta de torturadores e assassinos, todos impunes, porque protegidos pela caserna.
O capitão não é o projeto em si, mas o seu operador tornado necessário pelas circunstâncias.
Estamos em face de projeto de estado-maior que compreende uma coalizão de forças reacionárias, antidemocráticas, antinacionais. São as forças militares de um modo geral, as forças armadas, notadamente o exército, e as forças militares e civis estaduais, em país cuja população civil – facilmente atiçada pelos apelos à violência que partem do capitão – armazena mais de 40 milhões de armas que o exército diz não ter condições de rastrear, ou simplesmente cadastrar.
(Durante a intervenção militar no Rio de Janeiro, em 2018, ano eleitoral, os militares, chefiados pelo general Walter Souza Braga Netto, guarda-costas de Bolsonaro e seu candidato a vice-presidente, substituindo o insosso e vazio general Mourão, não conseguiram anunciar o desbaratamento das milícias fluminenses, que agiam então como agem agora, a céu aberto. Do relatório que deixaram consta a compra de muitas viaturas.)
O estado-maior governante, e assim se explica a perdurância do bolsonarismo, compreende a aliança política dos fardados com o centrão (o opróbio da política), que transformou a câmara dos deputados em valhacouto a serviço da corrupção e da destruição do estado social que vínhamos tentando construir a partir da primeira eleição de Lula; compreende a casa-grande e seus herdeiros, a Faria Lima e a Avenida Paulista, ou seja, o alto empresariado (no meio deles o ruralismo atrasado) e o rentismo internacionalizado. É este o conglomerado que nos governa, que exerce a ditadura ideológico-política, o governo dos herdeiros da dominação secular. É este o estado-maior que organizou e deu base política à patacoada do Palácio da Alvorada, e pretende prorrogar o bolsonarismo.
São muitos os sequazes desse poder extra republicano. São muitos os operadores da impunidade, que alimenta os crimes políticos. O primeiro deles é o procurador-geral da república, o novo “engavetador-geral da república”, arquivando todos os processos intentados pela sociedade civil contra o capitão ainda presidente. A guarda pretoriana se completa com o presidente da Câmara dos Deputados, que desconhece valores como moral, ética ou pudor; manipulando R$ 16,5 bilhões (o “orçamento secreto”), o jagunço alagoano controla com mão de ferro o processo legislativo, sem economiz ar em atos de violência contra o regimento da casa, praticando assim o que aprendeu com Eduardo Cunha, seu introdutor nos meandros da política suja. O aprendiz promete superar o mestre. Por aí, pois, estramos muito mal servidos.
Como deter a audácia do capitão e impedir que mais um golpe, desta feita um golpe dentro do golpe, seja levado a cabo para fraturar o processo eleitoral, frustrar a soberania popular e dar sobrevivência ao bolsonarismo?
A tática do golpismo militar, do qual o capitão é o ponta de lança, como todos sabemos porque tonitruado aos quatro cantos da terra, é criar o caos, mediante a difusão da violência, a intimidação dos adversários, arruaças e sublevações, a construção do medo coletivo. Vamos aceitar? O passo seguinte será o “restabelecimento da ordem” pelos militares que estão em suas ilhargas. O antídoto não são negociações de gabinete, nem o recurso judicial tão ao agrado dos bacharéis do liberalismo. É o povo na rua. A alternativa co m a qual podemos contar é a mobilização popular. Não exatamente para o processo eleitoral, mas antes, já agora, para garantir o próprio processo eleitoral.
É fundamental que Lula entenda isso, e dependemos dele, só dele, pois não é inteligente a esta altura esperar racionalidade do candidato do PDT.
A necessidade de mobilização popular se impõe quando nossos partidos expõem sua crise, quando o movimento sindical acusa fragilidade; quando a vida acadêmica, amorfa, é presa de verdadeira catalepsia político-cívica. Este vazio, que a direita e a extrema-direita tendem a ocupar, coloca para os grandes líderes, aqueles que caminham na primeira linha do processo social, o desafio de atender ao imperativo histórico, aquele papel que João Goulart recusou em 1961 e recusaria de novo em 1964. A história exige de Lula que, acima de seu justo projeto eleitoral, assuma a liderança nacional em defesa da democracia. Só ele, hoje, tem condições políticas e morais de levantar o país, trazer as grandes massas para o proscênio e impedir o golpe e a ditadura, a vitória da casa-grande contra os interesses populares. Espera a nação que ele compreenda o significado do processo histórico e o papel que as circunstâncias lhe cobram. Até porque, se não derrotarmos a extrema-direita, não teremos eleições; se as tivermos, dependendo da correlação de forças estabelecida, ainda não teremos assegurada a posse de nosso candidato; se Lula tomar posse não terá condições de governar, se não tiver forças para enfrentar uma maioria parlamentar adversa, a má-vontade do grande capital e o reacionarismo militar. A correlação de forças de que carecemos será concertada nas ruas, com o povo, este agente hist&oac ute;rico no qual muitos setores da esquerda brasileira ainda não confiam.