19 de dezembro de 2022 5:29 por Da Redação
Quando se vê hoje o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva construir uma frente ampla contra um presidente de extrema direita que busca a reeleição, alguns podem se surpreender com sua capacidade de sentar à mesa e chamar à ação figuras políticas que defenderam o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff ou mesmo que tenham eventualmente apoiado a sua prisão ilegal. No entanto, sua trajetória mostra que a abertura do diálogo para além daqueles que pensam da mesma forma sempre foi uma característica da sua liderança.
O historiador John D. French destaca que esta já era uma preocupação de Lula como líder sindical, que pretendia fazer com que sua mensagem ultrapassasse o universo dos operários sindicalizados no ABC paulista, que o pesquisador estima serem somente 20% da categoria no fim da década de 1970.
“Não se pode fazer mudanças no mundo apenas com a chamada vanguarda, tem que haver capacidade para dialogar”, pontua. “Aceitar, primeiro, que as pessoas tenham ideias diferentes. Mesmo uma classe social, um partido, um movimento, não são homogêneos, são compostos de uma variedade de consciências, ideias e referências. A questão é sobre como construir uma mensagem que possa englobar mais pessoas e levá-las a participar. E o fato de participar leva à politização.”
French está lançando o livro Lula e a política da astúcia: de metalúrgico a presidente do Brasil, coeditado pela Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo. Professor de História na Duke University e na North Carolina University, também é autor dos livros O ABC dos operários: conflitos e alianças de classe em São Paulo (1900-1950) e Afogados em Leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. Para sua obra mais recente, ele realizou uma extensa pesquisa, com entrevistas e acesso a inúmeros arquivos e documentos para analisar aspectos da vida pessoal de Lula, incluindo o período de sua infância e juventude, associados ao contexto histórico de São Paulo entre as décadas de 1950 e 1980.
Mais do que uma trajetória centrada no indivíduo, o historiador buscou as circunstâncias que influenciaram a formação de uma das mais importantes lideranças políticas da história brasileira, que de alguma forma também refletem a resiliência da esquerda no país. “O povo brasileiro e a esquerda brasileira já sofreram tantas derrotas e ainda estão em pé”, se admira o brasilianista, ao comparar Brasil e Estados Unidos nesse quesito.
“Tento abordar no livro essa visão mais completa, a partir do ponto de vista das pessoas de baixo que conseguiram virar o jogo em um mundo onde não era bem óbvio que isso ia acontecer”, pondera, em entrevista concedida ao Brasil de Fato. Confira:
Brasil de Fato: Na premissa do livro você diz que a obra é uma narrativa que incorpora em primeiro plano os processos políticos, sociais e culturas, rejeitando uma análise personalista. Em linhas gerais como esses processos interferem na formação do Lula torneiro mecânico e sindicalista, e depois naquele que se torna presidente em 2002?
John D. French: Temos que pensar sobre as grandes transformações a partir dos anos 1950. A industrialização, que chegou a ter um boom duas vezes, não apenas no começo dos anos 1970 mas também na época do Juscelino [Kubitschek], provocou a mudança de 32 milhões de pessoas de outras áreas para São Paulo e aí temos o caso da família Silva, em um processo de sair de um mundo e ir para outro que estava surgindo.
São Paulo entre os anos 1950 e 1970 era um lugar de esperança para todos, uma grande aventura. A questão da migração é fundamental, mas ele é tocado pelo fato de passar parte da adolescência no Senai e tem a ver com uma época mais ou menos democrática. Menos democrática do que hoje em dia: a democracia era muito limitada, incluindo o banimento dos partidos de esquerda e a perseguição política por parte do Estado, mas era a época do Juscelino [Kubitschek, ex-presidente do Brasil]. Esse sentimento criou uma geração de jovens de origem humilde, no caso de Lula, que atingiram uma mobilidade social inimaginável para os pais e essa experiência deu uma visão para esta geração de uma sociedade sem limites, mas na qual era preciso lutar, ser teimoso. Isso abrangia o sindicalismo e a sociedade em geral.
BdF: Em relação à própria forma de fazer política do Lula, já era possível identificar algumas características na relação dele com os trabalhadores que permanecem até hoje?
JF: O argumento que uso no livro é o seguinte: você tem que compreender o Lula como construção de uma liderança. O discurso dele e as suas formas de atuar foram definidos antes das greves de 1978, já estavam bem claras. Era a forma de fazer a política dentro do sindicato, que era uma escola ótima e não era algo simples. Houve muito tumulto, muitos grupos, e o que ele fez foi criar espaços de convergência através e apesar das diferenças.
Em relação às pessoas que não gostavam da esquerda e eram mais conservadoras dentro do sindicato, ele lidava bem com eles, assim como lidava com todas as pessoas de esquerda dentro das fábricas. Mas, ao mesmo tempo, essa questão de ser aberto e criar um espaço ao seu redor, mesmo com pessoas que não se gostam, ia até o momento em que alguma ação acontece. Daí, todas essas relações de pessoas ao redor do Lula eram redefinidas.
É uma política aditiva, as lideranças na diretoria que fizeram as grandes greves incluíam pessoas que eram consideradas de direita e que também foram colocadas sob a Lei de Segurança Nacional. Em geral, Lula não deixa inimigos. Como liderança, ele quer colaboradores, e se você se mantém leal, ele também se mantém com você. E é muito difícil construir convergências, mesmo hoje, elas parecem totalmente paradoxais, mas o estilo e a capacidade de liderança de Lula está aí.
O que acontece em geral quando as pessoas ascendem, seja na academia, entre jornalistas, é que se perdem as raízes, acabam se preocupando apenas com as pessoas de cima. Mas uma das coisas que marca a sua trajetória é que ele sempre teve tempo para qualquer pessoa, tratando os outros com seres de valor e não só sobre política o tempo todo. Frei Chico, seu irmão, era uma pessoa que partiu para a esquerda bem jovem, mas ao mesmo tempo, segundo Lula e outros membros da família, era meio chato com essa coisa de falar sobre capitalismo o tempo todo.
BdF: E o Frei Chico foi uma espécie de primeiro mentor, uma figura de destaque na história do Lula, junto com a mãe, dona Lindu.
JF: Um terço do livro trata de Lula antes da entrada no sindicato. Colocando ao lado do livro da Denise Paraná [Lula: o filho do Brasil], que fez um trabalho inestimável de entrevistar quase todos os membros da família dele que estavam vivos à época. E as pessoas sabem muito pouco da família, e se você não souber essas histórias não vai conseguir compreender quem são esses migrantes e os mundos que os movem, quais seus objetivos. E ao mesmo tempo é reconhecer que eles venceram na vida por um triz, havia uma grande possibilidade de uma desestruturação da família.
BdF: O que era um risco em uma época de grandes migrações internas em que as pessoas não tinham nenhuma assistência do Estado.
JF: O Vavá explica por que apenas Lula atingiu o primário completo: é uma questão de fome. Não houve qualquer ajuda do Estado, programas sociais, nada. Estavam ali dependendo de colocar as pessoas desde os 11 anos de idade para ajudar na sobrevivência. Mesmo a educação primária era muito incomum naquela época. Havia falta de investimentos em escolas públicas, mesmo em São Paulo, e uma educação primária que contava com educadores com preconceitos contra os migrantes e as classes baixas.
Lula é um contador de histórias, mas são histórias que não são apenas dele, são da família. Tento abordar no livro essa visão mais completa, a partir do ponto de vista das pessoas de baixo que conseguiram virar o jogo em um mundo onde não era bem óbvio que isso ia acontecer.
BdF: As pessoas em geral gostam das jornadas de herói, da figura do self made man, e na prática o próprio Lula já se afirmou mais de uma vez como resultado de uma construção coletiva.
JF: Exatamente, o mundo dele é totalmente diferente, mas ao mesmo sempre se esforçou para manter um vínculo. Não é uma pessoa fortemente individualista em termos de ser o Messias que pede a confiança nele para resolver tudo, sua imagem é sempre a de que “vocês têm que se salvar”. A tarefa da liberação tem que vir da classe trabalhadora. O Eugene Debs [candidato do Partido Socialista à Presidência dos Estados Unidos], que teve 6% dos votos em 1912, dizia que se fosse possível levar os trabalhadores à Terra Prometida, isso já teria acontecido, são vocês que têm que lutar. Não vai ser uma coisa fácil.
BdF: Falando dessa luta, não existia até então uma tradição de mobilização dos trabalhadores naquela região de São Paulo e de repente temos as greves no fim da década de 1970 no ABC. Como Lula influenciou os trabalhadores naquele momento e como eles influenciaram a própria práxis de Lula?
JF: Sempre existe uma visão construída do que deveria ser a classe operária. Falo no livro que a construção de Lula é um diálogo entre sociólogos da USP e os trabalhadores da indústria metalúrgica do ABC, origens sociais totalmente distintas.
Nos anos 1960, menos de 1% dos jovens estavam na universidade, e todos eles tinham origem na elite ou na classe média. Em 1968, por exemplo, ele achava que os guerrilheiros eram terroristas, pessoas más, e Frei Chico explicava que não, eram pessoas que estavam tentando mudar o mundo…
Do ponto de vista do Lula, a grande questão era ir além de uma atuação junto a pessoas já politizadas, operários já sindicalizados, que eram só 20% da categoria — e mesmo assim nem todos eram politizados —, não se pode fazer mudanças no mundo apenas com a chamada vanguarda, tem que haver capacidade para dialogar. Aceitar, primeiro, que as pessoas tenham ideias diferentes. Mesmo uma classe social, um partido, um movimento, não são homogêneos, são compostos de uma variedade de consciências, ideias e referências. A questão é sobre como construir uma mensagem que possa englobar mais pessoas e levá-las a participar. E o fato de participar leva à politização.
As pessoas que migraram das áreas rurais de um país fortemente autoritário, com a maioria no campo sendo quase escravizada, submetida à dominação política, sabem que os ricos são inimigos, mas entendem que eles sempre ganham e não vale a pena lutar. É a questão da falta da confiança em si, que se pode mudar algumas coisas. O sindicalismo é uma ótima escola justamente para a pessoa saber que pode resolver um problema, por exemplo, ao tentar resolver uma disputa sobre o pagamento.
O grande desafio, baseado nas pesquisas que foram feitas nos anos 1970, é falar sobre como surgiram aquelas greves, porque não é nada óbvio. A segunda parte do livro trata de 1968 a 1980, e o terço final do livro trata da questão do PT e campanhas presidenciais. Aquelas greves são inacreditáveis porque grande parte dos metalúrgicos do ABC gostava do regime militar por conta do milagre econômico, as fábricas estavam expandindo, assim como o emprego. A questão como é que eles mudaram a partir da questão material, com o achatamento dos salários por conta da mentira de 1973, mas uma injustiça em si não vai mobilizar as pessoas. É preciso uma liderança e uma mensagem que possa atingi-las e oferecer uma explicação para colocá-las em ação.
Entre 1978 e 1980 existe um processo de transformação e o surgimento de um novo ator social fundamental e diferenciado, que não engloba 95% das pessoas, que são os peões do ABC, mesmo tendo sofrido na terceira greve, 15 mil pessoas perderam o emprego e muitos ficaram desiludidos, a maioria sem possibilidade de ser empregado de novo em uma indústria grande. A questão é ver como uma massa de pessoas, e não apenas em São Bernardo em Diadema, mas também em Santo André, chegaram a mudar conjuntamente, o que já é um milagre. Ninguém esperava isso. Depois isso chegou a outros, estudantes e outras camadas sociais que estavam fartas da ditadura. E não era inicialmente contra a ditadura, era contra o mau tratamento do governo que mesmo reconhecendo a mentira [do milagre econômico]não fez nada para resolver o problema que eles mesmos criaram.
Não tem nada semelhante na história das Américas, são as lutas mais bem documentadas, mas que hoje estão quase esquecidas, as pessoas não sabem muito bem. Se você chega a conhecer de perto as complexidades e limites, não é que isso vá acontecer de novo, mas há muito o que aprender ali. Não é apenas Lula, mas quem são esses metalúrgicos do ABC e o grupo que chegou a se afirmar como identidade coletiva. Na cidade de São Paulo isso não aconteceu do mesmo jeito, era uma categoria com mais empresas pequenas, uma política sindical mais complicada. Mas os metalúrgicos, junto com os bancários de São Paulo, são a grande força que deu uma contribuição grande não só para o surgimento da CUT como também do PT.
BdF: Esse aspecto da última greve não ter sido bem sucedida, torna ainda mais impressionante que saia uma contestação tão incisiva à ditadura, que depois ainda resulta no surgimento de um partido político do tamanho do PT.
JF: Uma das perguntas que faço é a seguinte: como a derrota de 1980 não liquidou a liderança de Lula? Liderança é uma questão de relação, de diálogo, Depois de 30 dias, quando os dirigentes do sindicato foram soltos, voltaram para os portões das fábricas, mesmo sendo vaiados, e montaram um tipo de estrutura para os desempregados. É manter-se fiel e oferecer um diálogo. Aquela luta e mesmo a derrota passaram a ser fundamentais mesmo para pessoas de camadas sociais que não têm nada que ver com os operários. Abriu-se um espaço de diálogo e a construção do PT é o produto de uma parte da geração de 1968 com as pessoas que surgiram das classes populares e movimentos sociais no fim dos anos 1970, uma construção nova.
Obviamente, o PT hoje é totalmente diferente. Mas temos as origens, o diálogo e o fato de que há pessoas ali naquele período que ficaram para o futuro. No outro lado, vamos dizer, da luta imediata, havia figuras como o Fernando Henrique Cardoso, no começo da carreira, com o apoio que foi dado pelo sindicato de São Bernardo para a pretensão dele de sair como candidato do MDB para Senado. Em 1980, o Fernando Henrique Cardoso teve uma atuação boa em relação à greve, mesmo que posteriormente a relação vá se tornar uma grande rivalidade [entre ele e Lula]. O Fernando Henrique não era bom de votos, ele ganhou duas vezes de uma forma estrondosa, mas, ao mesmo tempo, os candidatos dele em geral já perderam muitas eleições. Lula ainda está lá na frente, o que já é uma coisa fora do comum na política, em qualquer país. Digo na conclusão [do livro]que Lula é o Pelé de eleições presidenciais. É muito difícil imaginar ser o primeiro ou segundo mais votado em oito eleições consecutivas. Isso não existe no mundo. Obama desapareceu na política norte-americana, ele não tem nenhum peso.
BdF: Você mencionou o livro da Denise Paraná, publicado pela Perseu Abramo, e tem um trecho em que afirma que Lula é uma síntese daquilo que é “mais vivo, complexo e original da nação brasileira”. Ele representa, de fato, uma parte da história do Brasil, considerando todos os aspectos únicos da sua vida, mas, por outro lado, a resistência a ele por parte das elites também mostra um outro lado da história do Brasil, fruto de uma sociedade escravocrata e que tem uma raiz autoritária muito forte?
JF: Falar de “um povo” já é um mito e dizer que um homem representa algo também, isso não existe. São coletividades muito complexas e as pessoas são definidas pelas coisas boas e ruins de cada sociedade. E existe a luta, os conflitos que surgem e que são vinculados à distribuição do poder nas estruturas socioeconômicas, dinâmicas de classe, nível de democracia. Acho que a questão é o seguinte: Lula utilizava uma citação de Paulo Freire que eu desconhecia, dizendo que a política se dava em saber mobilizar os diferentes para confrontar os antagonistas. Reconhece que qualquer coisa que vá mudar o mundo tem que ser construída por pessoas, posições e posturas totalmente diferentes. A questão é definir esses antagonistas.
A história mostra que, primeiro, houve eleições no Império, mas não eram eleições verdadeiras. Na República, não houve voto secreto e tudo era controlado. Foi com Getulio, em 1932, a primeira vez em que o voto secreto chegou, mas a primeira eleição com participação massiva da população é em 1945, por causa de uma manobra de Getulio que colocou que as fábricas tinham que fazer a inscrição eleitoral, porque ele identificava a questão do peso: os interesses no interior, nas áreas rurais, das oligarquias estaduais, precisavam de um contrapeso urbano. Também foi por parte desse cálculo que ele apoiou a criação dessas estruturas governamentais de representação sindical.
Getulio, mesmo sendo um homem autoritário, uma pessoa altamente anticomunista, antiesquerdista, estava contribuindo para uma luta que tentasse mudar o país numa direção mais voltada à modernidade, um capitalismo autônomo também em relação à interdependência e à dominação internacional pelos países ricos. Tem um vínculo entre Getúlio e Lula, não apenas em termos de serem os dois grandes políticos e também reformistas que fizeram alguma coisa para mudar o país. Uma vez a pessoa estava queixando, “onde estão as reformas estruturais fundamentais, dos impostos, a reforma agrária?”. Ganhamos uma eleição, não uma revolução. Em uma situação de revolução, mesmo que seja muito custoso, pode-se fazer mais coisas. Mas a questão é a seguinte: não podemos mudar nada até atingir um movimento revolucionário ou dizer: “vamos ver o que podemos construir”.
Essa questão é uma visão que era altamente importante em alguns momentos decisivos também: reforma ou revolução? Mas isso é uma pergunta apenas para um momento em que se está entrando num período revolucionário. Desafortunadamente, em comparação com o resto da América Latina, no Brasil, o sistema da classe dominante em parte foi baseado na escravidão, quase três quartos do país eram pessoas descendentes de escravos no recenseamento de 1872. Nunca houve revoluções nem houve guerras civis, que podem deixar espaço para as pessoas de baixo surgirem. No Brasil, houve no século 19 esse tipo de luta, mas eram regionais.
As heranças são muito complexas, mas não são apenas de um lado. Na realidade, não se pode ter um sistema de dominação, nem nenhum sistema de escravidão, nem um sistema de exploração sistemática da força do trabalho, se não existirem pessoas que acabam internalizando e aceitando. Quando se fala do autoritarismo, ele não existe apenas nas pessoas de cima, não se pode imaginar que as classes populares são cheias de pessoas que amam a democracia e que não têm preconceitos, porque os preconceitos e ideias internalizadas são fundamentais. Imaginar que uma classe social é homogênea é uma coisa apenas de um marxismo livresco porque mesmo na época áurea da classe operária na Inglaterra, depois de 1945, quando eles ganharam a eleição com o Partido Trabalhista, nacionalizaram empresas, mesmo ali um terço da classe operária votava para os tories.
As pessoas não falam de Bolsonaro também como um exemplo de mobilidade social. O pai dele era do município mais pobre de São Paulo, cuja indústria e exportação são bananas. Isso, na prática, quer dizer o pai dele trabalhou como office boy numa clínica de odontologia, e aprendeu a tirar dentes. Então, o pai dele ganhou o pão tirando dentes de camponeses pobres nesse município no interior de São Paulo. Os preconceitos e as coisas que ele expressa não são apenas dele. Para minha surpresa, boa parte da base dos mais ricos, que são aqueles 20% que estão com ele, não estão fazendo nenhum comentário sobre o fato de Bolsonaro não saber bem falar português, que faz piadas grosseiras, algumas coisas que eles sempre mobilizaram contra Lula, quando, na realidade, Lula é quase um nobre na sua forma de atuação, com uma forma polida. Acho que você está absolutamente certo, isso é parte da realidade. Não podemos fechar os olhos e imaginar um povo super bom, nem imaginar que todas as pessoas do outro lado são totalmente más.
BdF: No livro, você descreve como a trajetória e a história política do Lula acabam criando laços de identificação com diversos setores da sociedade, com os mais pobres, as pessoas que passam fome, com os trabalhadores de uma forma geral. Ao mesmo tempo, Bolsonaro também tem esse poder de identificação com alguns segmentos, não?
JF: Os policiais militares do Rio de Janeiro, aliados de Bolsonaro, não são de famílias da classe média alta, são exatamente do povo mesmo. Tenho quase dois capítulos no livro sobre arrastão contra o PCB em 1975, que atingiu Frei Chico, mas os jovens que estavam fazendo o trabalho sujo de torturar as pessoas, a maioria deles vinha da Polícia Civil, Polícia Militar, eram pessoas da classe trabalhadora, das classes populares. O [Marcelo] Godoy, no livro A Casa da Vovó, é um repórter policial que fez entrevistas com todas as pessoas sobreviventes que trabalharam no DOI [Destacamento de Operações de Informação] em São Paulo. Mesmo hoje ele fala que todas as pessoas que entrevistou são cheios de retórica anticomunista.
BdF: Lula é fruto de uma mobilização dos trabalhadores, influenciou e foi influenciado por isso, mas hoje, no Brasil, temos um mercado de trabalho precarizado, quase metade dele informal, com o fenômeno da uberização. Nesse cenário, é muito mais difícil haver uma organização e mobilização de trabalhadores como vimos no ABC, no final dos anos 1970?
JF: A história do capitalismo em qualquer país é uma história de destruição criativa. Por exemplo, em 1900, na Inglaterra, na Alemanha, nos Estados Unidos, milhões de pessoas que trabalhavam nas minas de carvão, o que vai desaparecer depois. Aquela formação ao redor dessa indústria e sua formação social e cultural, tudo acaba sendo dispersado por razões que não têm necessariamente que ver com a atuação dos trabalhadores que, em geral, não têm o poder de definição. A formação de uma classe trabalhadora e das classes populares em geral é parte do capitalismo como sistema que está sempre criando e destruindo ao mesmo tempo. E a desindustrialização é um bom exemplo disso.
Sobre a questão do setor informal. Primeiro, a maioria do povo brasileiro sempre foi informal. A formalidade é uma coisa que se relaciona com o reconhecimento jurídico mas, nos anos 1930 e 1940, quando foram elaboradas as leis de trabalho, muito menos de 10% das pessoas estavam englobadas. Cheguei a experimentar os efeitos da desindustrialização, da destruição do tecido social, na minha cidade, Rochester, em Nova York, a cidade em que foi fundada a Kodak. Cerca de 45 mil pessoas trabalharam nas fábricas da Kodak e também outras grandes indústrias na região e quando se chega à desindustrialização dos anos 1980 havia menos de 2000. E todas as outras grandes fábricas também fecharam, o que deixou a minha cidade totalmente pobre.
Mas as pessoas têm que sobreviver. Essas formas díspares de conseguir algo para sobreviver sempre existiram, o proletariado industrial das grandes fábricas nunca foi maioria em nenhum país. A questão é como a sua forma de falar e suas mensagens vão chegar a esse grupo de pessoas uberizadas, operárias ou polivalentes, como os neoliberais gostam de dizer. Você pode ver facilmente na retórica de Lula, que ele sempre fala que micro empreendedorismo é bom, ele não vai ser contra, mas vai pensar em como oferecer uma legislação que os ajude a ter mais poder de pressão para negociar melhor os contratos. Fizeram isso na Califórnia recentemente, o sindicalismo norte-americano estava por trás dessa proposta que foi votada numa eleição democrática, forçando o reconhecimento e endurecimento dos contratos e dos termos de contratação. Não tentaram banir porque na realidade [essa forma de trabalho]não vai desaparecer.
Não estou dizendo uma coisa nova e isso é exatamente o discurso de Lula há muitos anos, tentar conseguir coisas que não são revolucionárias em si, mas que podem mudar a situação de pessoas para melhor, e elas vão ter algum tipo de lealdade com ele, um reconhecimento. Isso não é uma fraqueza, para Lula, isso é um espaço aberto onde se pode atrair as pessoas e conscientizá-las para reconhecer que temos que fazer muito mais do que apenas isso.
BdF: Você é brasilianista desde 1979, já viu de perto diversos momentos da nossa história política, mas este, em especial, é considerado bastante complexo. O que é possível esperar do cenário político brasileiro no Brasil depois das eleições presidenciais desse ano?
JF: Sou um norte-americano e não tenho opiniões sobre a política brasileira, estudo a história política porque cada país tem os seus direitos e faço política nos Estados Unidos. Então isso quer dizer que, para mim, tenho observações para fazer, mas sempre baseado em um distanciamento natural.
Acho que a situação este ano é, vamos dizer, dramática, mas na verdade, em termos das tendências, não é tão diferente de 2018 antes de colocarem o Lula na cadeia, mesmo contra a legislação eleitoral (porque a Lei da Ficha Limpa não dizia que não podia concorrer, dizia que não poderia assumir depois). Pensar em termos apocalípticos sobre a possibilidade de um golpe militar, por exemplo: acredito que um golpe militar falido seria a base para reorganizar muitas coisas no país. Mas dessa possibilidade repetida o tempo todo não ajuda as pessoas, o medo é o grande inimigo dos avanços na luta. Qualquer sistema faz repressão e semeia medo para manter o poder e, na maioria das vezes, funciona.
Tem uma observação do Lula, durante a época do Mensalão, que quando ele chegava no escritório da presidência, todos os assessores estavam ali, preocupados, ansiosos. E ele dizia “vocês estão lendo os jornais, isso não vai resolver nada, o que vocês estão fazendo é que vai resolver as coisas”. Isso é parte do jogo político e é uma das razões pelas quais pelas quais a maioria das pessoas não se mantém na atividade política, que exige um compromisso para a vida inteira, porque é muito difícil sofrer derrotas. Mas, veja bem, o povo brasileiro e a esquerda brasileira já sofreram tantas derrotas e ainda estão em pé. Isso é algo incrível, ainda mais do ponto de vista dos Estados Unidos, onde a esquerda verdadeiramente dita é muito pequena. Temos uma história muito menos gloriosa que a de vocês.
Serviço:
O livro Lula e a política da astúcia: de metalúrgico a presidente do Brasil pode ser adquirido no site da Expressão Popular e terá lançamento com a presença do autor nesta segunda-feira (12), às 19h, no Armazém do Campo em Brasília, e na terça-feira (13), às 18h30, no Armazém do Campo do Rio de Janeiro.