17 de dezembro de 2022 2:05 por Mácleim Carneiro
No final dos anos 1990, durante a minha primeira temporada na Europa, tive o imenso prazer de conhecer um músico excepcional, multi-instrumentista talentosíssimo, com uma brasilidade nos graves do tamanho da sua gentileza e generosidade humanas. Agora, tenho o prazer renovado ao receber o primeiro trabalho solo do meu querido amigo Mauro Lúcio Martins. Trata-se do instigante álbum ‘Funkamente Sambamental’, lançado pelo selo ARS MAGNA. No entanto, Mauro Martins já tem em sua discografia o álbum ‘Manha’, com o grupo Sotack, lançado em 1992, o que derivou, três anos depois, no lendário e raro álbum ‘Impacto Ímpar’, ao lado de Endrigo Bettega (bateria) e Mario Conde (guitarra). Sem mais delongas, vou direto ao ‘Funkamente Sambamental’, já que o assunto é saborosamente amplo e o espaço é pouco.
‘Laerciando’ (Mauro Martins) abre o álbum com um admirável tema instrumental em homenagem ao grande Maestro paulista Laércio de Freitas. Mauro Martins não economizou possibilidades nessa bela homenagem, criando uma introdução com um solo harmonizado de contrabaixo, daqueles que dá a impressão de ter sido feito em camadas. Porém, se conheço bem o baixista e compositor desse tema, é pura técnica e domínio absoluto do instrumento. São poucos compassos da introdução, porém, suficientes para capturar nossa atenção, que logo é recompensada por uma levada de samba brasileiríssima, que entra pelos ouvidos e sai pelos pés. De melodia sincopada, é executada em uníssono pela harmônica de Bertl Mayer e pelo trombone de Wesley Rubim, para depois criarem belíssimos improvisos, onde também pontua os teclados de Ricardo Fiuza. Assim, Mauro Martins abre brilhantemente os trabalhos em ‘Funkamente Sambamental’.
Slaps em dia
Generosamente, Mauro Martins não guarda cartas nas mangas e, logo na segunda faixa, ‘Canto de Ossanha’ (Baden Powell e Vinícius de Moraes) nos presenteia com uma versão em inglês de Norman Gimbel, para esse clássico do cancioneiro brasileiro. Mas, aqui, ele nos apresenta um sabor muitíssimo especial, na voz precisa e doce de Viviane de Farias, não por acaso, sua companheira de vida e de projetos musicais (Duo Balakumbala). Tudo, com direito a um solo de contrabaixo em slaps absolutamente em dia. ‘Quem Com Ferro Fere’ (Lucas Franco e Murilo Silvestrim) amplia as experiências vocais e traz o resultado da busca de Mauro Martins por novos compositores Nela, num clima de Clube da Esquina, Lucas Franco e Rogéria Holtz são as vozes que combinam e harmonizam essa bela canção, onde as progressões harmônicas pontuam desde a introdução até a própria melodia, ao longo de toda canção. Ressalte-se o belo solo de soprano do Marcelo Martins, que dispensa comentários.
Os Deuses apolíneos sabem juntar os bons! E foi assim que, na Rússia, para uma tour dentro de um projeto que envolvia uma big band de Moscou, Mauro Martins conheceu pessoalmente o grande Idriss Boudrioua e compuseram ‘Magnifique’ (Idriss Boudrioua e Mauro Martins), um samba cheio de malemolência, que faz absolutamente jus ao título, com direito a um solo impecável de sax tenor do Marcelo Martins. ‘Gol do Brasil’ (Paulinho Di Tarso e Mauro Martins) é uma velha conhecida minha, na voz da Diana Miranda, numa gravação ao vivo, no Montreux Jazz Festival, com Mauro Martins no contrabaixo. Aqui, Viviane de Farias dá o tom preciso de sobriedade e reflexão, que o arranjo e o discurso atualíssimos dessa canção sugerem, apesar de ter sido composta em 1990. Outro ponto alto é o desempenho de Jef Sabbag (piano e teclados) em um solo tipo narração de um gol de placa. Já passamos da metade do álbum e aterrizamos em ‘Aeroporto’ (Mauro Martins), num pouso suave, de atmosfera onírica, onde Mauro Martins toca todos os instrumentos e solfeja a dolente e bela melodia e, de quebra, nos oferta um solo de teclado, quase como um assovio, perfeitamente adaptado à textura dessa envolvente canção!
Configuração Lemniscata
O alumbramento anterior é quebrado em ‘Ruminante Love’ (Paulinho Di Tarso, Rubinho Jacob e Mauro Martins), um salto fora da curva nesse trabalho. Não apenas pelas participações de Paulinho Di Tarso e Rubinho Jacob, maravilhosamente expressivos em seus respectivos cantos. Paulinho, na introdução, praticamente à capela, não fosse uma cama de cordas e o perfeito baixo acústico de Mauro Martins que, como ele nos contou, nunca havia gravado com baixo acústico na vida! Mas, sempre teve facilidade para afinar nesse instrumento poderoso! Rubinho, pela delicadeza do seu cantar em contraponto à fortaleza sertanejamente árida dessa bela e desafiadora canção. Na sequência, ‘Fogueira About’ (Mauro Martins) estabelece uma nova fronteira em ‘Funkamente Sambamental’, porque, como disse o próprio Mauro, “todo músico tem uma loucura de experimentar coisas e desafiar outros músicos, com polirritmia.” A introdução já dá uma atordoada no ouvinte, e o que parece 4/4 na verdade é um 7. As tentações seguem até o final, em mais uma desconstrução polirítmica, de volta ao xote maurianamente crível.
Já na reta final do álbum, duas homenagens são postas para o desfecho final desse trabalho revigorante e criativo. A primeira é Funk Zappa (Mauro Martins), que já começa pela corruptela sobre o nome do grande e saudoso Frank Vincent Zappa. E ele está mais do que presente nas divisões e nos timbres usados nesse tema. Porém, Mauro vai além e traz para a cena a guitarra de Mario Conde, num revival, em duo, dos bons tempos do Impacto Impar. Por fim, ‘Desapego’ (Mauro Martins), dedicada à saudosa Elis Regina, acalma os ânimos num belo tema, onde os contrabaixos de Mauro Martins e as cordas do Quarteto de Acuerdo, em brevíssimos dois minutos e meio, se despedem do ouvinte deixando uma nostalgia quase melancólica, que nos provoca a imediata reação de voltarmos ao começo, para mais uma audição em configuração de lemniscata.
SERVIÇO
Funkamente Sambamental, Mauro Martins
Plataformas digitais: Apple Music, Spotify, Deezer, Amazon Music, Tidal
Disco Físico: pelo Tel. (41) 9985 6104
No +, MÚSICABOAEMSUAVIDA!!!