6 de janeiro de 2023 12:18 por Da Redação
Por Inês Castilho, do Outras Palavras
A maconha é o remédio do século 21. Seu impacto na saúde humana só é comparável ao impacto da penicilina, descoberta em 1928, pela capacidade de combater bactérias e a eficácia na luta contra várias doenças. O mesmo acontece com a cannabis medicinal. Em razão das propriedades bioquímicas dos canabinoides, terpenos e flavonoides que a planta contém, de efeitos anti-inflamatórios, antitumorais e de sincronização neuronal, entre outros, a maconha combate enfermidades como autismo, câncer, vários tipos de epilepsia, Parkinson e Alzheimer.
Quem faz essas afirmações é o neurocientista e contramestre de capoeira Sidarta Ribeiro, uma das vozes mais respeitadas na pesquisa com psicodélicos, hoje, no Brasil e fora dele. Nascido em Brasília há 51 anos – casado com a premiada psiquiatra e neurocientista cearense Natália Mota, ativista pela inserção de mulheres e meninas na ciência, e com ela pai do Ernesto e o do Sérgio –, o ariano Sidarta Ribeiro “é um cara de utilidade pública para as futuras gerações”, conforme Mano Brown, porta-voz da juventude negra. Sidarta é o nome do Buda, ele diz ao rapper em resposta ao significado do nome que lhe foi dado pela mãe, Vera, antropóloga muito ligada à teosofia e ao budismo quando de seu nascimento.
Não, a maconha não consome nossos neurônios, garante. Muito pelo contrário, produz novos neurônios e aumenta a comunicação entre eles. “A cannabis é muito benigna, tem efeitos benéficos muito variados e efeitos colaterais adversos muito pequenos, exceto para alguns grupos de risco bem conhecidos. Será no século 21 não a última, mas a primeira escolha médica para muitas doenças.”
Sidarta Ribeiro é mestre em biofísica pela UFRJ, doutor em comportamento animal pela Universidade Rockefeller, com pós-doutorado em neurofisiologia pela Universidade Duke, professor titular de neurociência, fundador e vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN. Publicou mais de 100 artigos científicos em periódicos internacionais e cinco livros de ficção e divulgação científica. É ao mesmo tempo um ávido buscador das tradições indígenas e afro-brasileiras, dos saberes populares e da nossa ancestralidade. Pesquisa memória, sono e sonhos, plasticidade neuronal, comunicação vocal em aves e primatas, neurociência aplicada à educação, psicodélicos e política de drogas. Ativista de grande habilidade política, fez durante muito tempo a costura entre a academia e movimentos de rua, como a Marcha da Maconha, na luta pela ampliação do debate antiproibicionista.
É o rei das lives, brinca o amigo Bruno Torturra. Desde 2019, quando lançou O Oráculo da Noite – A história e a ciência do sonho, até agora, com Sonho manifesto: Dez exercícios urgentes de otimismo apocalíptico, Sidarta é presença constante nas redes – do Boletim do Fim do Mundo ao podcast Mano a Mano e TV 247, em conversa com o oncologista Drauzio Varella e com mulheres ligadas à ciência no 5a Chamada, no podcast Que Soem as Trombetas do cientista Stevens Rehen, no blog Virada Psicodélica de Marcelo Leite, no Roda Viva, na Ilustríssima, na Flip.
Sorridente e tranquilo, sempre deferente ao feminino e reverente aos mestres, ele fala às vezes de casa, junto a livros e cordões de capoeira, o berimbau e o atabaque. Narcisismo zero. Capoeirista há 22 anos, Sidarta se move na harmonia e não se distrai com besteira. “Capoeira tem a ver com respeito: não matar, não morrer, continuar jogando. Gosto de dizer que ela tem os mesmos pilares da ciência: disciplina com alegria. Na ciência a gente tem de aprender a cair e levantar, cair e levantar, cair e levantar. É exatamente o que a capoeira ensina.”
Remédio para quem
Maconha, ou cannabis sativa, é um vegetal com mais de 500 substâncias de interesse. As mais conhecidas são o CBD, ou canabidiol, excelente ansiolítico; e o THC, de composição quase igual à do CBD mas efeito contrário: ativa o pensamento e a criatividade. As duas atuam de forma colaborativa e causam mudança no cérebro, promovendo plasticidade neuronal. Por isso a maconha é mais benéfica para os mais velhos do que para os mais novos, e não deveria ser consumida por adolescentes – a produção de neurônios e novas sinapses é abundante na juventude e vai decaindo com a idade.
“O THC é uma revolução na geriatria. Aumenta a produção de proteínas sinápticas, a velocidade neuronal. Tem alguns efeitos adversos que devem ser mitigados pelo CBD, e por essa razão, nos países em que a cannabis está sendo legalizada, a ênfase é na combinação entre THC e CBD. Uma pessoa com tendência à psicose não deve consumir THC – mas se o THC faz mal, o CBD faz bem, é um remédio pra quem tem psicose. A cannabis com níveis altos de CBD é bastante segura para a população em geral.”
O efeito de uma substância no organismo humano é produto de três aspectos, ensina Sidarta: da substância – qual a dose, se é pura ou não, se tem contaminação; da pessoa – sua genética, em que momento de vida está, o que já passou na vida; e do meio social, se está ou não cercada de gente que quer prendê-la. Ao experimentar a droga, uma pessoa muito reprimida pode entrar em paranoia só pelo fato de ter recebido muita repressão. Excluído esse componente social, contudo, seja a repressão pelas leis, pela religião ou pela família, ainda assim algumas pessoas vão reagir bem e outras não vão reagir bem ao THC.
“Cada caminho é um caminho. Conheço várias pessoas que fizeram uso de maconha na adolescência e isso foi prejudicial, dificultou o estudo, a concentração; e outras que consumiram e isso as ajudou. Em geral, quanto mais tarde a pessoa começar, mais benefícios e menos malefícios ela pode receber. A questão da maconha é o uso que as pessoas fazem dela, uso de drogas não é abuso de drogas.”
A cannabis medicinal é uma realidade em países como Alemanha, Israel, Estados Unidos, Canadá, Argentina, Chile, Colômbia, Uruguai. Nos EUA, está legalizada em 36 estados para uso medicinal e em 16 deles, para uso recreativo.
Renascimento psicodélico
Se há 50 anos o estudo dessas substâncias ameaçava a carreira dos cientistas, desde o final do século passado as terapias psicodélicas vêm sendo pesquisadas com muito sucesso e obtendo efeitos de longa duração. São muito oportunas para tratamento dos problemas cognitivos, de ansiedade e depressão causados pela Covid e dos transtornos mentais de veteranos de guerra nos EUA.
“Estão sendo criados vários centros nos Estados Unidos e na Europa, com milhões de dólares, muitas start ups pesquisando as terapias psicodélicas, sobretudo para lidar com questões de sofrimento psíquico que não têm solução dentro do paradigma atual. É um assunto muito quente, cientificamente”, informa Sidarta.
Psicodélicos são substâncias que provocam alterações no campo da percepção, principalmente visual, na esfera das emoções e na esfera cognitiva. As mais conhecidas são LSD (dietilamida do ácido lisérgico), psilocibina (presente em algumas espécies de cogumelos), DMT/ayahuasca (dimetiltriptamina, presente em várias plantas), MDMA (metilenodioximetanfetamina, droga sintética conhecida como Ecstasy) e mescalina (extraída de alguns tipos de cactos). São substâncias similares a neurotransmissores produzidos pelo corpo humano, tais como os endocanabinoides, que simulam os canabinoides das plantas da maconha, e a serotonina, com análogos encontrados na ayahuasca e no LSD.
“A partir dos anos 2000 começaram a ser feitos muitos estudos com MDMA e psilocibina, e seus resultados, se confirmados, devem levar essas substâncias pelo mesmo caminho da cannabis. O MDMA está surgindo como uma novidade sensacional no tratamento do transtorno do estresse pós-traumático, conforme um estudo já na fase 3 publicado na Nature Medicine. Também as pesquisas com psilocibina estão avançando.”
A pesquisa “LSD, Loucura e Cura: Experiências Místicas como Possível Elo entre Modelo Psicótico e Modelo Terapêutico”, conduzida pela Unicamp em parceira com a UFRN e publicada em julho de 2021 na Psychological Medicine, é a primeira realizada com LSD em seres humanos no país, desde os estudos pioneiros do psiquiatra Clóvis Martins, da Faculdade de Medicina da USP, nos anos 1950-1960. Mas o Brasil produz principalmente estudos com a ayahuasca, substância sagrada para grupos indígenas da Amazônia e regulamentada para uso cerimonial de religiões brasileiras como o Santo Daime, a União do Vegetal, a Barquinha, o Alto Santo.
O país ocupa o terceiro lugar, atrás apenas dos EUA e do Reino Unido, num ranking sobre produção científica com psicodélicos publicado no Journal of Psychoactive Drugs em 2021. Entre nossos principais pesquisadores estão Luis Fernando Tófoli, da Unicamp, Rafael Guimarães dos Santos e Jaime Hallak, da FMRP-USP, Stevens Rehen, da UFRJ e do Instituto D’Or, e Dráulio de Araújo, Richardson Leão e Sidarta Ribeiro, da UFRN – entre outros e outras.
Psiquiatria e Big Pharma
As pesquisas sobre o impacto dos psicodélicos na saúde mental ocorrem num momento em que a hipermedicalização com remédios psiquiátricos torna-se preocupante. As pessoas foram convencidas de que, para ser menos infelizes, precisam tomar remédios todos os dias, e isso gerou uma multidão de pessoas bastante medicalizadas, frequentemente tomando, por meses a fio, combinações de remédios que jamais foram testadas pela ciência. A psiquiatria do futuro está mais para a psicoterapia do que para os fármacos, aposta Sidarta.
“A crença de que o humor pode ser modulado quimicamente, que não depende dos vínculos e aspectos sociais, tornou-se hegemônica nos últimos 50 anos. A subjetividade humana e o sofrimento psíquico foram reduzidos a uma molécula, a serotonina. A questão é sobre vínculos, não sobre serotonina. Serotonina até um invertebrado tem.”
O tempo mostrou que a eficácia desses antidepressivos é muito mais baixa do que se pensava inicialmente, até porque os estudos iniciais eram feitos com amostras pequenas, e muitas vezes financiados pelas próprias empresas que produziam os medicamentos.
“A psiquiatria convencional foi para a cama com a indústria farmacêutica. Hoje, qualquer especialidade médica receita antidepressivos, e conforme a idade avança a pessoa vai tomando cada vez mais remédios. Uma meta-análise publicada recentemente mostra que os 21 antidepressivos mais comumente usados têm um efeito bem pouco maior que o placebo – e muitos efeitos adversos”, diz ele.
Drauzio Varella tem a mesma visão. “As pessoas querem uma pílula para emagrecer, uma pílula para ser feliz. É enorme a quantidade de pessoas que tomam antidepressivos, um absurdo. Ginecologistas e ortopedistas receitam. Quase todo mundo toma remédio para dormir. Não sabemos quais serão as consequências a longo prazo. Distúrbios de memória? Alzheimer?”, disse o oncologista na live de lançamento do livro Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira, do jornalista Marcelo Leite.
Ao contrário dos antidepressivos convencionais, de consequências imprevisíveis ao longo da vida, os medicamentos psicodélicos são administrados em doses pequenas e ocasionais, como auxiliares da psicoterapia.
“A pessoa faz psicoterapia por 10, 15 sessões, seus traumas são trabalhados, e aí ela recebe o auxílio daquela substância, em poucas doses e quantidades muito baixas. Esse remédio vai fazer com que os neurônios produzam novas conexões sinápticas, e o aumento da plasticidade cerebral, a capacidade do cérebro se modificar rapidamente durante aquelas sessões de psicoterapia, faz com que as mudanças sejam de longo prazo. Ocorre uma ressignificação dos eventos causadores do trauma”, afirma o cientista. “A gente está falando de tratamentos para pessoas que sofrem muito. O sofrimento grassa no mundo, e a pandemia piorou muito esse quadro.”
As drogas psicodélicas são um instrumento de autoconhecimento, afirma o jornalista escritor especializado em ciência Marcelo Leite. “São substâncias de trabalho, no sentido de elaboração psíquica, de entender seus problemas e melhorar sua vida – daí a importância da psicoterapia. Essa ideia de que são substâncias destruidoras, que abrem buracos na mente, nunca foi comprovada pela ciência. Ao contrário, perante outras drogas elas têm um bom perfil de segurança de uso, baixa toxidade, a maioria não tem potencial de provocar dependência química.”
O uso de drogas faz parte do processo individual de busca pela felicidade, defende o neurocientista Carl Hart, professor da Universidade Columbia, em seu livro Drogas para Adultos.
Demonização da maconha, glorificação do álcool
A maconha é uma planta exótica, trazida ao Brasil pelos africanos escravizados e conhecida como fumo-de-Angola. Seu uso disseminou-se rapidamente entre negros e indígenas. Já o cânhamo, fibra têxtil de uma espécie de cannabis com baixa concentração de THC, aportou por aqui junto com os portugueses. As velas, assim como as cordas das caravelas e as roupas dos colonizadores eram tecidas com ela. A palavra maconha seria um anagrama da palavra cânhamo.
O cientista pioneiro Elisaldo Carlini (1930-2020), referência mundial nos estudos sobre o potencial terapêutico da cannabis, ensina em artigo publicado em 2007 no Jornal Brasileiro de Psiquiatria que “séculos mais tarde, com a popularização da planta entre intelectuais franceses e médicos ingleses do exército imperial na Índia, ela passou a ser considerada em nosso meio um excelente medicamento indicado para muitos males”. Há notícias de que a rainha Carlota Joaquina, esposa de D. João VI, tinha o hábito de tomar chá de maconha.
A repressão ganhou força depois da II Conferência Internacional do Ópio, em 1924, em Genebra – quando o delegado brasileiro, o médico Pernambuco Filho, afirmou que “a maconha é mais perigosa que o ópio” diante das mais de 40 delegações presentes. Mas na década de 1930 era ainda um produto farmacêutico citado nos compêndios médicos. Até que, em 1938, um decreto-lei federal proibiu o plantio, cultura, colheita e exploração da planta em todo o território nacional.
Em vigor desde 2006, a Lei de Drogas nº 11.343 diferencia a posse de drogas ilícitas para consumo próprio daquela cuja finalidade é o tráfico – mas não determina as quantidades. A pena por tráfico, geralmente aplicada segundo a cor da pele, é de 5 a 15 anos, e resultou no encarceramento em massa de jovens e mulheres pobres e negros. O número de brasileiros atrás das grades triplicou nos últimos 20 anos, saltando de 232,7 mil em 2000 para 773,1 mil em 2020, sendo quase 40% por infringir a Lei das Drogas, segundo dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional). O número de mulheres foi de aproximadamente 6 mil para 37.165 no mesmo período, um aumento de mais de 600% – quase 70% acusadas de tráfico. Os negros são mais que o dobro dos não negros,
66,7% para 33,3%. Todo camburão, sabemos, tem um pouco de navio negreiro, como diz o pessoal da Marcha da Maconha.
A maconha foi demonizada e o álcool, glorificado. Estudo realizado pelo Global Drug Survey em 2017 a respeito da segurança no uso de drogas, com a pergunta sobre quais drogas, quando usadas, geraram a necessidade de tratamento de emergência, revelou que, numa escala de 0 a 5, a metanfetamina foi a primeira do ranking, com 4,8, seguida pela cannabis sintética, com 3,2, e o álcool, com 1,3. No final da lista ficaram a cannabis natural, com 0,6, e os cogumelos mágicos, com 0,2.
“Não há nenhuma base científica na proibição de algumas drogas atualmente ilícitas e na glorificação de algumas atualmente lícitas. As substâncias proibidas estão entre as menos perigosas, tanto no momento agudo, quanto crônico do seu uso. Foram proibidas nos EUA, nos anos 20 e 30, por razões econômicas e de racismo, para coibir hábitos de grupos negros e hispanos, como os mexicanos. Essa proibição foi exportada para o mundo”, observa Sidarta.
O álcool tem muito potencial de dano, tanto para o indivíduo como para a sociedade. Não deve ser proibido, mas regulado: trazer no rótulo informações sobre seus danos e a forma de reduzi-los, como tomar água enquanto bebe. Acabar com a propaganda positiva, de jogador de futebol ao lado de um mulherão tomando cerveja na praia.
“A gente não fez com o álcool o que fez com o tabaco e deu muito certo, 20 anos atrás. Acabou com a propaganda positiva, a propaganda negativa está no rótulo, existe restrição de local de uso. O consumo despencou, a prevalência de uso era de quase 45% e agora está em 15%. Então a questão é regular de maneira inteligente, ser isonômico. Substâncias glorificadas devem ser mais reguladas, substâncias demonizadas devem ser menos reguladas. A cannabis e os psicodélicos são remédios, e quando as pessoas estão doentes elas precisam de tratamento.”
Por essa razão, o cientista defende a regulamentação do acesso à cannabis medicinal. “A cannabis medicinal no Brasil está legalizada mas só existe para o rico, que vai à farmácia e compra por R$ 2.500 um frasco minúsculo de remédio à base de THC e CBD. E os pobres, fazem o quê? A classe média também não pode pagar tudo isso.”
A maconha virou um grande negócio, diz ele. “Foi a única pauta progressista que avançou nos últimos anos, o Brasil, graças às cooperativas de pacientes em luta pela vida; aos capitalistas, que só estão esperando a queda da lei das drogas para lucrar; e por causa da pesquisa científica, desde os primeiros estudos realizados pelos pioneiros Elizaldo Carlini e Dartiu Xavier da Silveira, na Unifesp.”
Legalização e regulação
A luta pela descriminalização das drogas levada por cientistas e movimentos sociais já tem mais de uma década, no Brasil. Sidarta defende que o assunto seja tratado com racionalidade: as drogas devem ser legalizadas, para que se possa falar sobre o assunto e promover a educação.
“Como se faz com o leite: se tem intolerância a lactose, não toma leite com lactose. No ambiente da proibição, ninguém sabe nada e todo mundo está em risco, porque a pessoa que consome maconha não sabe a dose, não sabe se tem uma genética que vai causar perigo pra ela, não sabe se tem contaminante naquilo. A única coisa que ela sabe é que pode sofrer violência do Estado ou, vamos dizer assim, dos comerciantes da maconha.”
A maconha que a maioria dos usuários brasileiros consome vem do Paraguai, revela a reportagem da Pública, e é “quadrada, marrom e fedorenta, bem diferente da esverdeada forma de flor em que ela é colhida”. Um integrante da AbraCannabis, que defende o direito ao cultivo da maconha para fins de saúde e autocuidado, explica à agência de jornalismo investigativo que “outro aspecto negativo da maconha do tráfico é o desconhecimento do teor de THC, em geral alto, e de outros fitocanabinoides”.
A Marcha da Maconha veio desafiar o paradigma proibicionista, e está de volta às ruas após mais de dois anos de ações virtuais, com manifestações em mais de 20 cidades. Realizada em vários países a partir de 1994 e no Brasil desde 2002, a MM sofreu repressão policial até 2011, quando o STF decidiu por sua legitimidade.
“O Estado vem quente. Mas nóis já tá queimando”, provoca, irreverente, o coletivo antiproibicionista Desentorpecendo a Razão, o DAR, que organiza a Marcha em São Paulo. “Temos como caminho a mudança de mentalidade, tentamos convencer as pessoas de que nós, enquanto sociedade, precisamos pensar em outras formas de lidar com as drogas: formas baseadas na redução de danos, na dignidade, na liberdade, no cuidado, no respeito às escolhas das pessoas. A mudança que a gente acredita vem de baixo”, declara.
Em 2022, a MM da Zona Sul de São Paulo marcha contra o fascismo e a guerra às drogas, e a Zona Sudoeste demanda legalização, desencarceramento e anistia aos presos. O Rio declara que “Maconheiro não vota em miliciano” e exige o fim das operações policiais nas favelas e a legalização da planta. Niterói denuncia: “Delegado, solte o preso. Prisão e pobreza têm cor e endereço”. Brasília pede maconha no SUS. Volta Redonda e Chapada dos Veadeiros vão às ruas pela primeira vez. Em São Bernardo do Campo, a demanda é da geral: “Comida, trabalho e maconha no vaso”.
Culturas ancestrais
Os psicodélicos prometem uma nova terapêutica que remete a culturas ancestrais. São plantas de poder, fungos de poder, animais de poder de uso cerimonial por povos originários de várias partes do mundo. O uso crescente dessas substâncias, contudo, causa preocupação a esses povos, pela apropriação cultural e a globalização de medicamentos vegetais.
O Instituto Chacruna, cofundado e dirigido pela antropóloga brasileira Bia Labate, tem a missão de promover educação pública sobre plantas psicoativas e estabelecer diálogos entre o uso tradicional de plantas sagradas e a ciência psicodélica. Criou a Iniciativa de Reciprocidade Indígena para incentivar publicações e conversas sobre como honrar as raízes indígenas do movimento psicodélico, descolonização, conservação, apropriação cultural, perspectivas indígenas sobre a globalização de medicamentos vegetais, inclusão de povos indígenas no circuito psicodélico e ética na nova indústria psicodélica.
“A a reciprocidade é um conceito indígena que não se encaixa perfeitamente no modelo de exploração capitalista que extrai lucros das culturas indígenas”, afirma em seu site. “‘Ayni’, o termo quíchua para reciprocidade, refere-se a uma sociedade existente em constante estado de fluxo, perpetuamente reordenando e corrigindo o desequilíbrio dinâmico de cada momento da vida em busca do bem-estar coletivo.”
Milhões de dólares têm sido investidos em empreendimentos psicodélicos corporativos, e no entanto os psicodélicos naturais têm origem muito humilde. María Sabina, a curandeira que revelou o cogumelo psicodélico ao mundo ocidental, morreu na pobreza. Sua história ajuda a refletir sobre a importância de não repetirmos os mesmos erros.
No verão de 1955, um vice-presidente do J.P. Morgan e um fotógrafo da moda foram os primeiros homens brancos a participar de uma cerimônia Mazatec com o cogumelo portador de psilocibina, conduzida pela curandeira em Oaxaca, no México. Sem consultar ninguém, o fotógrafo Allan Richardson documentou o ritual. O banqueiro Robert Gordon Wasson teve uma experiência de profunda religiosidade e, contrariamente aos princípios cerimoniais, publicou as fotos e relatou sua experiência na revista Life de maio de 1957. As consequências desse ato na vida de María Sabina foram devastadoras: ficou famosa entre celebridades, mas teve sua casa incendiada e invadida pela polícia, e foi forçada a deixar sua cidade natal por um tempo. Morreu em 1985, aos 91 anos, sem nunca ter usado sapatos.
Expandir a consciência
Vivemos um ponto de mutação, uma encruzilhada evolutiva, com risco de extinção de muitas espécies e da nossa própria espécie. Para Sidarta, a evolução só será possível com a expansão da consciência planetária, e isso passa pelo uso criterioso dos psicodélicos. Com seu otimismo apocalíptico, de quem acredita nos sonhos, ele faz uma aposta.
“É um momento muito trágico, mas também muito mágico, de energia potencial enorme e um acúmulo humano planetário jamais existente de bens materiais e imateriais. Se os 3 mil bilionários que vivem no planeta reconhecerem que a adoração ao deus dinheiro é uma doença mental que faz mal ao mundo, e passarem a construir ao invés de predar, saquear, devastar o planeta, conseguiremos acabar com a maldição da desigualdade. É uma mudança muito localizada, em sinapses de poucas pessoas, uma quantidade ínfima de células em comparação ao todo”, diz, considerando que cada um de nós tem 90 bilhões de neurônios. “A transformação não virá pela destruição dessas pessoas, como poderíamos supor, porque a história mostra que sempre haverá outras querendo tomar o lugar delas”, afirma.
“Se quisermos sobreviver a nós mesmos, precisaremos abandonar os hábitos paleolíticos de competir em vez de colaborar, acumular em vez de distribuir. Já passou da hora de dar um upgrade em nosso software”.