18 de maio de 2024 3:38 por Da Redação
Por Oswaldo Epifânio
Os seres suspensos, que voam sobre nossas cabeças, alados, e que conseguem viver no piso das nuvens, estão nas mentes e não nas calçadas da casa da gente, nem muito menos nos desenhos das paredes de nossa infância, quadros de fantasmas e de monstros desenhados pela nossa imaginação no reboco sujo do quarto estreito.
Não têm cores, rostos, odores, pele e nem espirram, esses tais.
E ainda castigam, definem o destino, perdoam os pecados. Não se aborrecem, nem se manifestam nas alegrias como nós, os imbecis. Por isso são, assim, também imbecis, do meu jeito.
Mas não é sobre isso que pretendo dizer, sobre os deuses danados, com aquelas salivas saídas das orações pela redenção dos pecados.
Quero falar das atribuições.
O que transferimos para esses seres subaquáticos das lágrimas da representação é um horror. Como seres oportunistas, sempre criamos as divindades para ocuparem o lugar da mais incrível manha humana: “isso não é comigo”.
Os deuses, o Deus, os orixás, o trovão e a terra molhada, vejo, são muito mais usados pelas nossas querências do que mesmo pela morte severina.
Saímos da fé em um (D)deus, ou de uma vaca indiana, para a mais escabrosa das mentiras humanas: “peço perdão”.
Não somos pecadores, ora, somos cruéis.
Por isso mesmo, não adianta pedir a salvação. Bobagem querer salvar a própria ignomínia.
Tolice tentar dizer a si mesmo que está em paz com os próprios arrependimentos.
Não adianta!
O tempo para pedir perdão e salvação não existe, simplesmente.
O que aparece é uma chuvinha de espuma para enganar deus e o diabo, quando dobramos os joelhos e, com um olhar oblíquo machadiano, balaçamos nossos lábios em direção aos santos imóveis.
O paraíso é distante na mesma proporção da andada de nossas mentiras.
Quanto menos mentimos, mais próximo estaremos da paz de nossas crenças, embora o ser humano nunca tenha sido feito para deixar de mentir.
A fé é uma mentira sagrada que usamos para enganar nossas divindades.
E aviso: elas não são tolas e só ficam de frente para as nossas ventas se as tivermos como seres reais e não como entes amassados pelos nossos suspiros falsos de adoração.
Sim.
Não há (D)deus sem o cheiro doce de uma estradinha de terra malvada, sem o apetite do bebê pelo peito da mãe, sem a diversa franquia da solidão, sem a altura de uma música de amor sincero, sem uma reza para São José, sem a manhã tecida pelo galo do João Cabral, sem a esmola dada por outro esmolé, sem o jogo de chimbra, sem o grito de gol com o palavrão entre os braços, sem a safadeza na alcova, sem a benção do frade de barba distorcida, sem um verão de lascar, sem a vida virada pelo averso, sem o Djavan, sem o cheiro de caju, sem a subida dos degraus da catedral, sem ouvir o Bituca, sem frieira, sem a lembrança do primeiro beijo, sem o “caso sério” da Rita Lee, sem a raiva cotidiana, sem o sonho inútil, sem o canto da ema, sem a preguiça, sem “qualquer maneira de amor vale a pena”, sem a falta de tempo pra pensar, sem o agarradinho dos amigos, sem a ave-maria do gonzagão, sem o beco da coruja, sem Fernanda Montenegro, sem a poesia do Pessoa. Não.
Melhor mesmo é sair por aí feito um ser humano.
*Pife