Símbolo de uma era marcada pela pujança econômica do Rio São Francisco, a canoa de tolda Luzitânia, que chegou a transportar o cangaceiro Lampião na década de 1930, corre o risco de desaparecer completamente e, com ela, levar junto parte da memória naval brasileira.
Primeira embarcação tradicional do Brasil a ser tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ela já “sobreviveu” a um naufrágio, mas, hoje, está “cozinhando debaixo de telhas” em um galpão alugado no município de Pão de Açúcar/AL. Um especialista contou ao 082 Notícias que as juntas da canoa estão ressecadas.
Ao portal Deutsche Welle, a Sociedade Socioambiental do Baixo São Francisco – Canoa de Tolda, dona da canoa desde 1999, denuncia que “ela está em situação de extrema vulnerabilidade, com degradação em curso, e que o órgão nacional não dá prazo para iniciar os reparos e devolvê-la à navegação”.
Em outubro, diz a reportagem, a entidade enviou um ofício denunciando a situação da Luzitânia ao Ministério da Cultura e ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Iphan e solicitando uma intervenção para que a reparação da canoa aconteça e ela seja reintroduzida à paisagem local.
O Ministério da Cultura não respondeu à reportagem, mas, o Iphan afirmou que recebeu o ofício e que a canoa está desde 2022 abrigada de intempéries climáticas. “Seus componentes estão armazenados no mesmo local e igualmente protegidos”, afirmou o órgão.
Linha do tempo
Depois de um trabalho de restauro, a Luzitânia voltou a navegar em 2007, mas, já no governo Dilma Rousseff, comprovou impossibilidade financeira de custear algumas novas conservações. O Iphan aportou recursos e, em alguns momentos, tiraram o barco da água para fazer manutenção no casco.
Em janeiro de 2022, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) avisou que ocorreria cheia no São Francisco e, imediatamente, a Sociedade Canoa de Tolda pediu socorro. Um montante financeiro muito pequeno, em torno de R$ 9 mil a deixaria boiando.
O Iphan não repassou o recurso e a Luzitânia afundou, caso que teve repercussão nacional. A ONG foi à Justiça para obrigar o salvamento e o restauro da embarcação, conseguindo liminar. O Iphan a retira da água e a joga num galpão alugado em Pão de Açúcar.
Judicialização
Em 2023, a diretoria do Iphan se comprometeu com a justiça, reconheceu a culpa do órgão na gestão Bolsonaro e iniciou a proposição de implantar um “Canteiro Modelo” em Penedo, voltado a restaurar a canoa, que lá ficaria exposta em algum lugar. A Superintendência do Iphan em Alagoas, no entanto, não conseguiu empenhar recursos, que são devolvidos.
Na audiência realizada em junho deste ano, ficou definido que seria apresentado um cronograma e detalhes de como se daria o translado da canoa ao local de reparo. O prazo de 90 dias para que isso ocorresse terminou em meados de outubro. A Deutsche Welle apurou que valor já alocado pelo Iphan para iniciar o serviço é de R$ 500 mil, que está sendo usado para reformar o espaço cedido pela prefeitura de Penedo, onde será o estaleiro.
Esta linha do tempo demonstra o descaso com a memória naval brasileira e deixa no ar uma série de questões: Por conta de cerca de R$ 9mil a canoa afundou. Quanto gastou-se para salvar ela do fundo do rio? Quanto se gasta ainda hoje, por mês, no aluguel do galpão, que já chega a 36 meses?
O Iphan multará a si mesmo por não manter um bem declarado Patrimônio Nacional em péssimo estado de conservação? Como o Instituto justifica não ter verba para este bem e ter investido 20 milhões, somente em 2023, em outros bens culturais país afora? O Iphan tem avaliado o prejuízo para a deterioração do bem cultural por estar “cozinhando” embaixo de telhas? Pode disponibilizar tais laudos ou relatórios?