quinta-feira 26 de dezembro de 2024

O CANYON DO RIO SÃO FRANCISCO E A ESTUPIDEZ HUMANA

22 de março de 2021 11:44 por Fátima de Sá

Canyon do rio São Francisco, entre Alagoas e Bahia Foto: Fátima De Sá

Eu quero começar lembrando de duas frases que podem justificar o que vou mostrar aqui. Na verdade,  desconheço a autoria da primeira, embora esteja muito atual: “A ignorância é atrevida”. E a outra é do jornalista gaúcho, Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, famoso pelo falso título Barão de Itararé: “De onde menos se espera, daí é que não sai nada”.

Embora pareça estranho começar assim, vejamos… Hoje, Dia Mundial da Água, dia estabelecido para reflexões sobre as ÁGUAS, eu quero falar de ROCHAS, rochas que são esculpidas também pela força de ÁGUAS.

Paisagens de exceção

O rio São Francisco apresenta várias feições em seu longo percurso desde a nascente, em Minas Gerais, até a foz, na divisa de Alagoas e Sergipe. Particularmente diferente é a feição topográfica em longo trecho do sertão nordestino, onde o rio flui entrincheirado entre grandes paredões, protagonizando cenas de rara beleza.

Sobre isso, o saudoso Professor Aziz Nacib Ab´Sáber[i] assim explicou: […] o rio São Francisco talhou rochas graníticas em plena área dos sertões secos, na tríplice fronteira da Bahia, Alagoas e Sergipe.

Para deixar mais claro, Ab´Sáber, cientista conhecedor das variadas paisagens brasileiras, considerava os canyons “paisagens de exceção” e que devem ser preservadas. Os canyons constituem-se cenários complexos que desafiam cientistas de todo o mundo. E completou: Já se disse que as paisagens de exceção constituem fatos isolados, de diferentes aspectos físicos e ecológicos inseridos no corpo geral das paisagens habituais. Mais que isso, são referências para os homens desde a pré-história.

O que são canyons?

Enquanto isso, paremos um pouco para entender do que estamos falando. Os canyons podem ser submarinos ou de rio. E esses últimos, mais conhecidos, constituem-se em vales estreitos e profundos com encostas íngremes. Neles, ocorre a pressão do movimento da água, entrincheirada entre os paredões, e somam-se processos de intemperismo e erosão.

O Grand Canyon Yarlung Zangbo, no Tibete, é considerado o mais profundo do mundo – com mais de 5.300m, e seus mais de 500 km de extensão o tornam um dos mais longos do mundo.

Em artigo de revisão – Aspectos da hidrografia brasileira, publicado na Revista Brasileira de Geografia -, Ruth S. B. dos Santos, cita estudo de J.C. Pedro Grande, de 1955, no qual há uma lista do que o autor denominou de as “principais passagens estreitas” dessas bacias. E lá, dentre as oito citadas, consta: “No rio São Francisco, extenso canyon entre Petrolândia [PE] e Piranhas [AL]”.

O canyon do rio São Francisco
Canyon entre os Estados de Alagoas e Bahia Foto: Fátima De Sá

Em 2001, a Expedição Engenheiro Halfeld percorreu o trecho de Pirapora (MG) até a foz, em Piaçabuçu (AL), com o objetivo de fazer o registro das formações naturais existentes ao longo e no entorno do rio São Francisco. Então, destacaram o canyon, informando que a altura das paredes rochosas pode chegar a 50 metros, circundando o lago formado pela represa da Usina Hidroelétrica de Xingó, reservatório que tem, em alguns pontos, 190 metros de profundidade.

Por outro lado, Roberto R. do Amaral Reis, em seu livro Paulo Afonso e o sertão baiano, afirmou que o canyon foi elaborado a partir de rochas do Pré-Cambriano fruto do trabalho continuado das águas que se movimentam agitadas. Também, informou que é formado por rochas, ora graníticas ora gnaisses, que tornaram essa paisagem especialmente bela.

Nova “vocação” do rio

Mas, o Velho Chico mudou (aliás, mudaram-no), atraindo novos olhos. À jusante da barragem de Xingó, parte do canyon transformou-se tomando a forma de um lago que logo foi atraído por empreendimentos turísticos, haja vista informação da Secretaria de Turismo de Paulo Afonso, em 2006: O parque Ecoturístico do Rio do Sal proporciona um passeio de Catamarã pelo Canyon […]. Esse trecho navegável do Canyon pode chegar a mais de 80 metros de paredões de granito, além de ter uma extensão de 37km.

Assim, foi dada ao Velho Chico uma nova tarefa que se constituiu em fonte de lucro para empresas que deveriam assumir, paralelamente a planilhas financeiras, responsabilidade socioambiental. Olhos mais atentos não precisariam de bola de cristal para saber o que estava por vir.

 

 

Por outro lado, em 2011, na dissertação de Mestrado em Gestão do Desenvolvimento Local Sustentável (UFPE), Luiz Valdélio Lins analisou o Turismo Sustentável no parque ecoturístico canyon do rio do Sal (Paulo Afonso – BA). E constatou, entre outros, os seguintes gargalos: a) inexistência de planejamento estratégico e de um plano de monitoramento para implantação do parque; b) inconsistências na parceria entre poder público e trade turístico local; c) exclusão da população local na concepção e implantação do parque; d) indefinições sobre a gestão operacional.

Como está essa joia esculpida durante séculos pela natureza?

Antes de tudo, trago mais uma informação do Professor Áb´Sáber:

O canyon de Xingó, à jusante dos grandes reservatórios regionais […] é um dos desfiladeiros mais importantes e espetaculares do Brasil. Suas paredes rochosas semidesnudas são revestidas por espécies anãs de uma caatinga arbustiva esgarçada. Uma vegetação resistente se instalou em íngremes vertentes de rochas resistentes, superficialmente dominadas por litossolos.

Portanto, foi com tristeza, mas não surpresa, que li uma denúncia feita no mês passado, pelo jornalista Mozart Luna, em seu blog Meio Ambiente & Turismo[iii]. O título da matéria é revelador da situação atual: ICMBio tenta deter destruição do Vale dos Mestres na região dos Cânions. O trecho em questão faz parte de uma Unidade de Conservação (UC) Federal – o Monumento Natural do rio São Francisco – cuja fiscalização é da responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) – Ministério do Meio Ambiente.

No entanto, não é apenas fiscalização que deve ser responsabilizada, mas a gestão das atividades realizadas na UC. Quem ali desenvolve atividades turísticas tem a responsabilidade de orientar os visitantes sobre como agir no local de forma responsável e civilizada, mesmo quando longe dos olhos dos fiscais.

Relembrando
Pescador artesanal – Olho D’Água do Casado Foto: Fátima De Sá

Eu falei que não fiquei surpresa, em primeiro lugar em virtude das informações de Lins, em relação ao Parque Rio do Sal. Em adição, uma visita que fiz, em 2014, em trechos do canyon no município alagoano de Olho D´Água do Casado, para escrever um capítulo de um livro[iv] que trazia resultados de pesquisas sobre a pesca artesanal naquela área. Por exemplo, constatei que os pescadores artesanais estavam enfrentando problemas decorrentes da “opção pelo turismo” tomada pelos gestores que não levaram em consideração as comunidades tradicionais daquelas áreas.

Ainda mais, essas comunidades já haviam sido vítimas das “opções” que levaram o rio caudaloso a se transformar, em vários trechos, em lagos de águas calmas. E, nesses novos lagos, não foi alterada somente a paisagem. Por ali passaram a atuar novos atores: catamarãs e lanchas com motores potentes, deslocando-se sem qualquer preocupação com as pequenas canoas artesanais, movidas a remos e pequenos motores, que passavam ou tentavam ficar paradas para atividades de pesca. E eu não apenas vi, eu estava em uma dessas canoas, ao lado do pescador, testemunhando um pouco do que eles passam quando se aventuram a buscar a sobrevivência naquelas águas.

A ignorância e a ganância são pragas bem atuais

Como resultado, muitas das novas atividades têm trazido ameaças à sustentabilidade da área. Lembremos que quando os desastres ocorrem, os prejuízos são sempre socializados. E, quando os negócios deixam de ser lucrativos, os empreendedores se deslocam para explorar outras áreas, enquanto aí permanecerão, sem outra opção, as comunidades tradicionais daquelas áreas ribeirinhas, pois é o único espaço de que dispõem desde que ali se instalaram seus antepassados.

Inscrições “rupestres”  do século XXI em paredão do Vale dos Mestres Foto: Mozart Luna

Eu reproduzo aqui foto do artigo do Luna, que nos mostra do que é capaz a ignorância. Em paisagens tão complexas, que constituem riqueza histórica e arqueológica, construída durante séculos pela natureza, a ignorância e a estupidez são mostradas nos paredões do canyon. Daqui a alguns séculos, arqueólogos terão dificuldade de decifrar que civilização passou pelo local.

Para finalizar

É apropriado lembrar algumas informações citadas, sobre os canyons, na National Geographic[v]: Os canyons são como diários silenciosos da história de uma área ao longo de milhares ou até milhões de anos. Ao estudar as camadas de rocha expostas em uma parede de um canyon, os especialistas podem aprender sobre a mudança do clima, que tipo de organismos estavam vivos em determinados momentos, e talvez até mesmo como o canyon pode mudar no futuro. E mais: Os cânions são importantes para a paleontologia. Os fósseis costumam ser mais bem preservados em áreas secas e quentes.

Por fim, nunca é demais ressaltar que a falta de planejamento, gestão adequada e compromisso com a sustentabilidade real pode comprometer o capital ecológico de forma irreversível, com consequências irreparáveis para as gerações atuais e futuras.

[i] ÁB-SÁBER, A.N. Paisagens de exceção e canyons brasileiros. Scientific American, v.1, n.6, p. 98, nov. 2002. [Republicado em: ÁB’SÁBER, A.N. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São Paulo: Ateliê Ed., 2003. p. 149-151.].

[ii] ALMEIDA, A.W.B.; MARIN, R.E.A. (Coord.). Nova cartografia social dos povos e comunidades tradicionais do Brasil: pescadores e pescadoras artesanais do Cânion do rio São Francisco. Delmiro Gouveia: Casa B Design/UEA Ed., 2009.

[iii] Disponível em: http://meioambienteeturismo.blogsdagazetaweb.com/2021/02/07/icmbio-tenta-deter-destruicao-do-vale-dos-mestres-na-regiao-dos-canions/. Acesso em: 20 mar. 2021.

[iv] Disponível em: http://www.sabeh.org.br/?mbdb_book=a-pesca-artesanal-no-baixo-sa%CC%83o-francisco. Acesso em: 20 mar. 2021. [O livro está disponível para download gratuito].

[v] NATIONAL GEOGRAPHIC. Education. Canyon. Disponível em: https://www.nationalgeographic.org/encyclopedia/canyon/. Acesso em: 21 mar. 2021.

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2 Comentários

  • Fátima minha amiga! Como é bom lê seus artigos. Já te disse isso mais repito, aprendo muito e gosto da maneira didática que você escreve. Não deixe de escrever! E seja sempre essa defensora das causas ambientais. Abraços!

    • Noêmia, são tantos e diversos os danos ambientais que sempre nos causam perplexidade. Eu não queria acreditar quando vi aquele paredão todo sujo com os rastros idiotas e criminosos que um ser humano é capaz de deixar em um ambiente tão precioso.
      Obrigada por tua força.

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