1 de julho de 2021 6:26 por Marcos Berillo
Pe. Gilvan Gomes das Neves é Mestre e Doutor em Ciências da Religião pela UNICAP. E-mail: Gilvan.neves@uol.com.br
“É verdade, meu senhor / essa história do Sertão /
Padre Vieira falou:/ o jumento é nosso irmão” (Apologia ao Jumento – Luiz Gonzaga)
Na minha infância longínqua, de menino do interior, sempre guardei as lembranças das nossas reinações e havia um animal que pela sua peculiaridade, docilidade, capacidade de adaptação e seu urro nas horas mais certas: sobretudo a do almoço, quando ele marcava esse tempo; esse animal, era, portanto, o jumento. Uma vez quando tive coqueluche o remédio indicado era o leite da jumenta preta. Onde encontrar? Foi no quintal do Sr. Pedrinho do “Fomento” que conseguimos esse miraculoso remédio e curiosamente fiquei curado.
Hoje, o abandono e abate põem jumentos sob risco de extinção no Nordeste. O jumento, animal-símbolo do Nordeste, chamado de “nosso irmão” em música de Luiz Gonzaga dos anos 1960, está em risco de extinção. Ele perdeu espaço para motos nas propriedades rurais do semiárido e, desvalorizado, virou até alvo da cobiça dos chineses.
Chamado também de jegue, asno, jerico, e, às vezes, chorão ou babau², sempre foi muito usado para transporte de carga. Do cruzamento com jumento com égua nasce o burro. O jumento urra ao meio-dia dando sinal para o almoço.
No dia 03 de julho, em Orocó-PE, há uma tradicional corrida de jegues. O poeta e xilógrafo Jota Borges escreveu: “O macaco é bicho esperto, / o jumento trabalhador,/ o macaco é mais alegre,/ o jumento mais sofredor,/o jumento sofre calado, / o macaco é chiador³. “O jumento tem as orelhas compridas porque não aprendeu seu nome e levou um puxão de orelha de Jesus Nosso Senhor”4.
Como me referi acima, animal em franca extinção. Diz o poeta Cearense Nicodemos Araújo
Eu sinto o coração penalizado / ao ver de estrada o mísero jumento / sob o seu fardo incômodo e pesado / ao rigor do mais duro tratamento./ E penso, às vezes, que a felicidade/ de haveres conduzido o Rei Divino,/ deu-te a força, esta serenidade / com que suportas teu cruel destino .
No interior do Nordeste, em inúmeras paróquias, um jumento carrega Jesus na encenação da sua chegada triunfal a Jerusalém, na procissão do Domingo de Ramos (Jo 12, 14-15). Esta entrada triunfal de Jesus já era encenada na Europa, no século X.
O grande cantor, compositor e tocador de sanfona, Luiz Gonzaga compôs a “Apologia ao Jumento”:
O jumento sempre foi o maior desenvolvimentista do sertão: ajudou o Brasil a se desenvolver; arrastou lenha, madeira, pedra, cal, cimento, tijolo, telha; fez açude, estrada de rodagem e carregou água pra casa do homem; fez a feira e serviu de montaria (…) o jumento é nosso irmão (…) Animal sagrado: serviu de transporte para Nosso Senhor quando era pirritotinho( sic) . Todo jumento tem uma cruz nas costas, foi onde o menino Jesus fez pipi (…) (GONZAGA, 1968).
O padre Antônio Vieira (1919-2003), a quem Luiz Gonzaga se refere na Apologia ao Jumento, era de Várzea Alegre-CE, região do Cariri. Ele publicou “O Jumento é nosso Irmão” 6, reunindo textos populares e eruditos, religiosos e profanos sobre o jumento e pronunciando-se contra a sua extinção no Nordeste. Para o mesmo fim, fundou o “Clube Mundial dos Jumentos”, em 27 de fevereiro de 1996, tendo como finalidade preservar e proteger a espécie considerando para tanto dois aspectos fundamentais: a) a matança indiscriminada desse valioso aliado do homem do campo; b) o descaso das autoridades no tocante aos implementos de repressão. Fato curioso é que essa associação teve alcance fora do Brasil, notadamente na França, inclusive o apoio da atriz Briggite Bardot, que carrega no seu sobrenome o nome do nosso animal, pois Bardô (significa “jumento”, em francês), a mesma não só se regozijou com o novo parentesco, como ainda militou pela causa usando o seu prestígio.
Notas:
1- Personagem da farsa popular bumba-meu-boi (Dicionário Online de Português).
2- BORGES, José Francisco. No tempo que os bichos falavam. Olinda: Casa das Crianças de Olinda/Instituto Nacional do Folclore, 1983, p.3.
3- CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 3ª edição. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972, p. 64.
4- ARAÚJO, Vicente Freitas. O carpinteiro das Letras – perfil bibliográfico de Nicodemos Araújo. Joinvile: Clube dos autores, 2018.
5- VIEIRA, Antônio. O Jumento, nosso irmão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964, 308 p.
Referências:
ARAÚJO, Vicente Freitas. O carpinteiro das Letras – perfil bibliográfico de Nicodemos Araújo. Joinvile: Clube dos autores, 2018.
BORGES, José Francisco. No tempo que os bichos falavam. Olinda: Casa das Crianças de Olinda/Instituto Nacional do Folclore, 1983, p.3.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 3ª edição. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972, p. 64.
VIEIRA, Antônio. O Jumento, nosso irmão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964.
4 Comentários
Muito interessante toda essa estoria do desenvolvimento do burro e sua trajetória, sempre pacato e sem imponência desde os primordios dos tenpos, servia para carga ou transporte de pessoas e nunca visto como destaque por tudo que era submetido. Pobre burro sempre burro.
Belo texto. Também tive a oportunidade de conviver com o jumento, em uma pequena propriedade da minha família.
Animal sagrado, como disse Luiz Gonzaga.
De grande serventia. Pau pra toda obra.
Artigo maravilhoso sobre o jumento!
Não sabia que estava em extinção! Ainda bem que é e será sempre lembrado por sua importância na história.
Por aqui ainda passam muitos jumentinhos puxando carroças carregadas de materiais diversos, sempre com sobrecargas. Dá uma pena!
Parabéns Padre Gilvan . Muito bem lembrado e oportuno esse reconhecimento do valor ao animal que serviu a Jesus é até hoje CONTINUA a nos servir
Eu tenho muita afeição pelo Jumento.Ate comprei um para o meu neto ,em lugar do Pôney que ele desejava.
Foi um sucesso !