27 de julho de 2021 9:09 por Mácleim Carneiro
Ela pareceu-me apreensiva e altamente fugaz. Nervosamente, esgueirava-se ao rés do chão, rente ao pé do muro, com passos curtíssimos, mas suficientes para estar sempre adiante de mim. Não foi minha intenção aparecer em sua vida, muito menos nesta bela manhã de sol do segundo dia do mês de novembro. De repente, lá estava eu, como coadjuvante de um epílogo nunca ensaiado. Nem ela nem eu nos esperávamos. Nem ela nem eu nos pretendíamos. Nem eu nem ela iríamos supor qualquer fim. Eu não tinha, não queria e nem pedi esse direito.
O que por curto tempo pareceu um jogo lúdico, uma brincadeira – como alguém que jamais alcança a própria sombra –, subitamente foi interrompido por ela. Talvez, sei lá, tenha achado que, de tão desproporcional era a minha presença, fugir aos poucos não seria mesmo a eterna solução. Talvez, por isso, me acenasse repetidas vezes tantos nãos. O fato é que, surpreendentemente, ela resolveu dar um fim ao nosso flerte e, num movimento inesperado, apartou-se da segurança ao pé do muro, cruzou a calçada e decidiu atravessar a avenida mais movimentada do Aquário.
Roleta Russa
Eu jamais teria a coragem e ousadia dela. Foram momentos de tensão. Pensei em filmar aquela cena, não tinha como. Pensei em gritar, não tinha porquê. Ajudá-la, não daria tempo. Os automóveis passavam velozes e insensíveis ao nosso drama. Torcer, torcer, apenas torcer, para que a travessia insana desse certo, era o que me restava ao devir. Foram segundos em que tudo parou. A exceção dos carros e dela!
A larga avenida tem três faixas de rolamento. O jogo já não era lúdico, era uma roleta russa. Para minha surpresa, o que parecia impossível estava acontecendo. Mais uma vez, rápida e com passos curtíssimos, ela avançou decidida. Acabara de se livrar do primeiro automóvel – acho que por um golpe de sorte – e alcançara a segunda faixa de rolamento quando, bruscamente, parou. Como se fora um toureiro, por um triz, livrou-se do segundo, do terceiro e do quarto automóvel. Ela jamais saberá que naquele momento ilustrou um paradoxo pertinente à vida; ao que passa e permanece.
Terceira Faixa
Eu, embora paralisado, percebi que começava a sorrir de alegria, pois ela dava um show de agilidade e suspense. Sim, agora eu tinha certeza: ela iria completar a travessia. Chegaria ao canteiro central e seria bem capaz de olhar mais uma vez para mim, nem que fosse só para mais um aceno de nãos. Acho até que ela também pensou a mesma coisa que eu. Só não sabia que a Avenida não perdoa, nunca daria a chance de pensar durante o ato de sua travessia. Antes, talvez. Depois, só com a sorte dos sobreviventes. O fato é que ainda restava a terceira faixa a ser vencida, portanto, mais uma oportunidade para a avenida insensível. Foi o que bastou!
Todos nós teremos nosso dia de finado. Por ironia, o segundo dia do mês de novembro foi o de uma lagartixa ousada e tola, que largou o pé do muro e, num exibicionismo fatal, definiu seu tempo. No entanto, muito mais que o feriado nacional, foi ela quem me fez refletir sobre o inexorável. Sei lá, acho que nome dela era Solange.
No +, MÚSICABOAEMSUAVIDA!!!
4 Comentários
Ótimo, Mácleim. Parabéns.
Meu querido Márcio, obrigado pela gentileza de sempre!
Grande abraço e, no +, MÚSICABOAEMSUAVIDA!???
Temos Mácleim, um mestre do suspense! E eu torcendo tanto pela Solange!
Grande Itamar, que Hitchcock não saiba disso…kkkk
Grande abraço e, no +, MÚSICABOAEMSUAVIDA!???