30 de novembro de 2021 4:38 por Geraldo de Majella
Se estivesse entre nós, Josias de Souza Marques (1921-1987) estaria completando 100 anos. Nasceu no dia 29 de novembro de 1921, em Anadia (AL), filho de Maria Jacinta Marques e Salvador Elizio Marques. O casal constituiu uma família com quatro filhos: José, Jonas, Josias e Juracy. Os filhos ainda jovens foram trabalhar para se sustentar e ajudar a manter a casa dos pais. José e Juracy conseguiram emprego durante a Segunda Guerra Mundial como operários têxteis em Rio Largo; no pós-guerra, decidiram imigrar para o Rio de Janeiro, num período de expansão da indústria nacional, e logo obtiveram trabalho como operários na Fábrica Bangu, onde trabalharam por mais de 35 anos no chão de fábrica.
Josias, o meu pai, iniciou a vida trabalhando como balconista em Anadia, na loja do “seu” Botelho; em seguida foi trabalhar numa farmácia, como aprendiz e balconista. Com o tempo e dedicação ao trabalho, aprendeu as técnicas de manipulação de medicamentos utilizadas à época. Confiante no que havia aprendido, arriscou-se abrindo o seu próprio negócio. Jonas, por ser incapaz, viveu sempre sob os cuidados dos pais e do irmão até os últimos dias de vida.
Anadia foi o seu universo mais ampliado. Impedido de sair da cidade para alçar voos mais longos no comércio por ser o responsável pelo irmão incapaz, resignou-se a viver a vida sem reclamar e entendeu que essa era uma das suas missões: cuidar da melhor maneira possível do irmão.
Em 1957, no dia 04 de janeiro, o padre Estevão da Rocha Lima oficiou o casamento de Josias de Souza Marques com a professora primária Marinalva Fidelis de Moura, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade, em Anadia. Dessa relação nasceram três filhos: o primogênito Geraldo de Majella nasceu no dia 5 de novembro de 1957, mas faleceu com menos de dois meses de vida. O segundo: Rosa Maria nasceu no dia 8 de setembro de 1959, na Maternidade Sampaio Marques, em Maceió, e o terceiro: Geraldo de Majella nasceu em Anadia, no dia 02 de janeiro de 1961. O avô, Salvador Elizio Marques devoto de São Geraldo de Majella pediu que se fosse homem registrasse com o nome do santo.
A vontade de ser médico foi abortada pelos motivos expostos, mas não cessou o desprendimento de servir como farmacêutico de um interior onde não havia médicos e os primeiros socorros se davam em sua farmácia e sob os seus cuidados. Isso lhe bastava na vida. A sua atividade comercial não era restrita a venda de medicamentos, mas se estendia a evitar as doenças e, se possível salvar vidas.
O binômio saúde e educação lhe preenchia de satisfação. Sabia que poderia lutar à sua maneira para melhorar as condições de saúde da cidade e ampliar a rede pública de educação. O tempo ‒ e possivelmente a falta de uma representação política que tivesse como plataforma essas duas bandeiras ‒ o levou para a atividade política, elegendo-se vereador em três legislaturas.
Meu pai era um tipo mineiro no seguinte sentido: falava pouco e procurava objetivar as ações. Quando em Anadia não havia o ensino médio, a sua bandeira era criar o curso pedagógico para formar professoras a fim de ensinar as crianças da zona rural e da periferia da cidade. Enquanto essa conquista não se materializava, as bolsas de estudos que eram destinadas à prefeitura ele fazia gestões para que alunos e alunas pobres viessem estudar em Maceió. Em alguns casos, e não foram poucos, a nossa casa recebia alunas que não tinham família na capital e estudaram até concluir o curso.
O mundo caiu sob sua cabeça em 1964, não por ser militante de esquerda ou manter vínculos com a esquerda, mas por vivenciar os tormentos que alguns dos seus amigos passaram ao serem presos. As portas de uma hora para outra foram fechadas. O seu principal amigo, o deputado Sebastião Barbosa de Araújo (Betinho), havia sido preso e teve os seus direitos políticos cassados por dez anos. E mais: José Simão das Neves, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, o vereador José Pedrosa Irmão, o ferroviário José Alde Mata da Fonseca e o motorista Djalma Fidelis Freire foram presos nos primeiros dias do golpe.
As aflições causadas pelos boatos e pela deduragem que emergiu com a ditadura militar o deixavam tenso. Por ser criança, só muitos anos depois é que eu soube dos fatos por ele e por minha mãe. Deslocava-se todas as quartas-feiras de Anadia para visitar os amigos presos na antiga penitenciária. Isso foi motivo da boataria de que seria o próximo a ser preso. Calmo e sereno, como sempre foi, manteve as visitas até quando o último dos presos foi libertado. Nunca alterou a voz, nunca discutiu com o “gado da época”. Nesse caso, não é metafórico o fato de aquela gente proprietária rural que apeava do cavalo na porta da sua farmácia a dizer: “o próximo preso será você, Josias”.
O perfil ideológico do meu pai seria o de um trabalhista que tinha como líder o governador Muniz Falcão e o presidente João Goulart. A ligação familiar, por parte de minha mãe, era com o deputado Abrahão Fidelis de Moura, de quem ela era prima e em quem nossa família votava.
Em suas andanças visitando presos políticos, conheceu alguns comunistas apresentados por Betinho que de alguma maneira marcaram a sua vida: o operário Rubens Colaço, o jornalista Jayme Miranda e o historiador Dirceu Lindoso. Colaço era boêmio e amigo do vereador José Pedrosa; com esse meu pai voltou a se encontrar várias vezes em Maceió, sempre na companhia de Pedrosa. Os outros dois nunca mais voltou a se encontrar.
O humanismo cristão é o que poderia definir o perfil ideológico de Josias de Souza Marques. A tolerância era o principal traço da sua personalidade. Além do bom humor.
A assistente social Lucia Ferreira de Souza, que viria a ser presa no pós-golpe e que ao ser solta mergulhou na vida clandestina nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, em 1979, com a Anistia, foi visitar a família em Anadia e passou na farmácia para rever meus pais. Nesse momento eu presenciei o quanto ele se emocionou por rever alguém que estimava e que não tinha a menor noção de se estaria viva ou morta.
Tudo do meu pai era voltado para a vida prática. A sua experiência era a de quem vivia a vida do interior, mas que lia e ouvia o rádio. O seu senso de justiça e o espirito democrático estavam muito além daquela comunidade em que nasceu e onde viveu até os 65 anos. Morreu no dia 7 de maio de 1987, na Santa Casa de Misericórdia de Maceió.
Estou em dívida como meu pai. Pretendia escrever um perfil biográfico, mas com a pandemia não foi possível. Em 2022 pagarei a dívida.
5 Comentários
PARABÉNS GERALDO VC FEZ UMA BREVE BIOGRAFIA DA VIDA DE SEUS PAIS.
Aguardarei o livro para breve.
Abraço Sol.
Belíssimo texto, amigo. Parabéns!
Boa noite! Majella lembro-me do dia do seu sepultamento. Saímos de Maceio, com o Freitas Neto dirigindo seu fusca marrom, conhecido na epoca como camelo, chegamos atrasados ao sepultamento, por causa da velocidade que o Freitas dirigiu seu fusca.
…..bela homenagem Magella!!!
Magela
Importante esse comentário. Anadia faz parte da nossa história. Lembro muito bem de Sr. JOSIAS e Marinalva. Josias era o médico da cidade.eu me achava muito magra e pedi a josias um remedio para engordar ele me receitou postafen.Enfim ele tinha um cuidado com seus clientes. Dona Marinalva auxiliava nas horas vagas. Oh que saudades das pessoas que você mencionou no seu comentário. Estou em falta com você. Mas podemos retomar.