22 de julho de 2022 12:02 por Mácleim Carneiro
Posto que ao teatro é permitida toda liberdade criativa e de imaginação, certa vez, no palco do Teatro Deodoro, foi traçada, com fita crepe, a marcação de um poço. Um poço profundo. Como era de se esperar, os convidados para festa não perceberam que esse poço ia além do palco e avançava pelo proscênio até à plateia, frisas e camarotes. Enfim, era mais que uma marcação cênica. O tal poço, crescia não em profundidade, mas em sintomático estabelecimento de uma nova premissa: os contrários não se atraem. À medida que o espetáculo acontecia, o que parecia ser um poço transformava-se em abismo, com a capacidade que os abismos têm de aprofundarem distanciamentos. No caso, o inevitável distanciamento entre o texto da peça Woyzeck Desmembrado e a mente do estranho público ali presente.
Era a abertura do Festival Todos Verão Teatro, com o Teatro Deodoro lotado de convivas. Percebia-se que era gente pouco afeita à apreciação de espetáculos teatrais, enquanto arte e mídia alternativa. Provavelmente, gente que, normalmente, não deixaria de assistir à novela das oito, hegemônica e alienante, para estar ali, não fosse pelas condições oferecidas pela produção do Festival: entrada 0800, boca livre após o espetáculo e um global no palco (ainda bem que era um ator de verdade).
Usufruto Político
Por mais que eu tente entender, não consigo deixar de achar que essa coisa do usufruto político em um acontecimento cultural, além de ser pouco meritório, é uma atitude provinciana. Lembro-me que foi totalmente desnecessário ter que ouvir o então governador, Ronaldo Lessa, dizer que embora a saúde, a educação e etc. eram prioridades, ele não poderia dar as costas para cultura. Sinceramente, não acredito que ele desconhecesse que os problemas sociais têm na sua origem embrionária exatamente a desatenção e o descaso com a formação educacional e cultural de um povo. Como cultura não é – e certamente nunca será – prioridade para os governantes do terceiro mundo, essa desatenção, além de histórica, é usurpadora e perpetua-se desde os nossos primeiros colonizadores. Suas raízes profundas chegaram ao século atual, arraigadas e fortalecidas pelas elites. Portanto, não era apenas uma questão de não dar as costas e sim muito mais que isso. É preciso parar de fingir que não vemos, ou não queremos ver, a falta da prioridade que deveria ser dispensada à nossa produção cultural e as mídias alternativas, em detrimento das hegemônicas. Não foi à toa que o Teatro Deodoro permaneceu fechado por tanto tempo.
As universidades estão formando advogados, médicos, engenheiros, arquitetos, jornalistas, enfim; profissionais que nunca leram um clássico, nunca assistiram a uma peça, nunca ouviram uma sinfonia, nunca fruíram uma exposição de artes plásticas e desconhecem o que seja mídia alternativa, por exemplo. São cidadãos e cidadãs, cujo objetivo primordial é o apartheid social. São vítimas de um modelo educacional que prioriza o adestramento para a produção. Assim, fica realmente difícil o entendimento de um texto como o do autor alemão George Büchner, mesmo que desmembrado.
Público Perfumado
Passado o incômodo dessas reflexões, lembro-me que me concentrei no espetáculo e não entendia por que, lá pras tantas, o que era uma peça de teatro parecia mais um show musical, onde, aí sim, seria normal aplaudir ao final de cada música. Pois bem, era esse o comportamento do “respeitável público”, que aplaudia a atuação do Matheus Nachtergaele, ao final de cada um dos curtíssimos atos. Não que ele não merecesse, porém, tal comportamento só fazia martelar em minha cabeça uma pergunta para aquele seleto público: por que não compareceu ao espetáculo Ensaio Número Dois, do Lael Correia? À época, o espetáculo do Lael (tão bom ou melhor que Woyzeck Desmembrado) não tinha nenhum global e, provavelmente, aquele público perfumado, mais uma vez, não entenderia nada.
No +, MÚSICABOAEMSUAVIDA!!!
1 Comentário
Esse cronista só me dá prazer de lê-lo, ele diz tudo o que a gente pensa…Obrigado, Macleim!!!!!!