9 de março de 2020 12:51 por Marcos Berillo
(*) Marcos de Farias Costa
Na minha imodesta opinião, Marcus Vinicius (Pão de Açúcar/AL, 14/2/1937-Maceió, 7/5/1976) foi o maior cantor alagoano de todos os tempos. Justificarei, ao rolar das linhas, a empolgada afirmativa. Não escrevi “seresteiro” porque ele não foi somente um cantor de serestas. Marcus Vinicius era um intrépido intérprete de sambas e de outros gêneros, na sua voz grave e sonora, de timbre aveludado, com entonação de barítono e leve impostação lírica.
Na época em que frequentava o Bar da Jaqueira ninguém interpretava igual a ele o praticamente correto Samba da bênção (Vinicius de Morais/Baden Powell, lançamento em 1966) ou a plangente Modinha (Sérgio Bittencourt, lançada em 1968), ou mesmo a clássica canção Chão de estrelas, do genial Orestes Barbosa (em parceria com Sílvio Caldas e lançada em 1937). O seu repertório era extenso e intenso, desde ralentados sambas-canções até lépidas e velozes marchinhas carnavalescas e outros gêneros, passando pelo fox, a valsa, o bolero (Ansiedade, do alagoano Antonio Paurílio, que só ele cantou a primeira parte e que não foi gravada “completa” por Alcides Gerardi, em 1952), o tango e outras variedades de canções.
Uma noite eu saía de um barzinho situado na Praça do Pirulito e passei no mercado público para comprar cigarros. Aproveitei e pedi uma saideira no balcão, e depois uma cerveja pra lavar a “prensa”, quando ouvi uma voz afinadíssima crescendo na noite. Apurei os ouvidos e percebi que alguém cantava o samba Chuvas de verão, de Fernando Lobo (lançado em 1949, na voz de Francisco Alves e regravado por Caetano Veloso, quase duas décadas depois). Apurando a visão, reconheci o cantor que vinha a pé, acompanhando-se ao violão e fazendo uma solitária serenata noturna em via pública. Era o Marcus Vinicius e vinha de grossa farra lá do Bar de “Seu” Didi. Para os mais jovens eu informo que o “Seu” Didi era o proprietário do frequentadíssimo Bar da Jaqueira, espécie de bunker lírico-musical dos anos 60, para os estudantes que entediados e revoltosos com a ditadura militar dos anos de chumbo, buscavam boa música e papos amenos e menos politizados.
Dizem que Nélson Gonçalves ao ser entrevistado e inquirido se haveria algum cantor no Brasil cuja voz se equiparasse com a sua, de supetão o cantor gaúcho gago disparou: “Marcus Vinicius, lá de Maceió”. Não sei se é verdade ou lenda, mas isso foi muito comentado em Maceió, em meados da década de 60, e entre a lenda e o fato eu fico com a lenda.
Certa manhã eu bebericava com o compositor Juvenal Lopes — no Bar do Chope, por volta de 1986 — quando um grupo de estudantes veio nos perguntar quais os dois maiores cantores alagoanos de todos os tempos. Nem titubeei: Augusto Calheiros e Marcos Vinicius. Juvenal, ao lado, sorriu, concordando.
Infelizmente Marcus Vinicius não deixou sua voz documentada em disco; só em precários registros em gravadores de rolo: uma dessas gravações eu ainda possuo, ele cantando e sendo acompanhado pelo pianista Nelson Almeida. Estas fitas antigas devem estar em extinção, e as que restam se encontram nos arquivos implacáveis dos colecionadores ou pesquisadores de música popular. Se Alagoas fosse um estado que valorizasse e preservasse os seus artistas, teríamos convertido para CD a única e última possibilidade sonora de resgate vocal deste extraordinário cantor, com arranjos modernos e participação dos artistas da terra. Mas isso seria sonhar acordado e com o ovo no uropígio da galinha.
Quando hospitalizado e com a saúde ameaçada, o boêmio e cantor Marcus Vinicius recebia os amigos da melhor maneira possível: além do bom papo habitual que era a sua marca registrada, ligava o passa-disco e ficavam horas escutando os clássicos da MPB, os seus ídolos Chico Alves, Sílvio Caldas, Orlando Silva e outros cartazes de sua preferência, buscando sofrear os que, emocionados, ameaçavam cair no choro. Os que o acompanharam no momento do último mistério afirmam que ele morreu cantando, como o poeta e visionário inglês William Blake.
Conheci Marcus Vinicius pessoalmente e uma vez apresentei-lhe um projeto de espetáculo musical no Teatro Deodoro (um dos milhares que morreram na gaveta do esquecimento), onde ele interpretaria o repertório dos grandes compositores do passado, como João da Baiana, Pixinguinha, Caninha, Donga, Sinhô, Brancura, Bide, Nilton Bastos e Ismael Silva, entre outros craques. Aí ele comentou, lúcido e entusiasmado: “Estes são os pioneiros!”. E seguimos pro bar do Eliel, situado na Rua Cincinato Pinto, para afogar as mágoas com mais uma meiota de cachaça. Mas sem esquecermos a chalaça.
E volto a repetir em minha festa imodesta que Marcus Vinicius foi o maior e melhor cantor alagoano de todos os tempos. Com a diferença que cantava grosso e não usava tatuagem nem brincos. Até amanhã − se Deus quiser.
(*) Marcos de Farias Costa é poeta, compositor e livreiro
1 Comentário
Para enriquecer meu acervo musical alagoano tenho uma cópia do registro vocal do cantor Marcus Vinicius lamentávelmente morto duas vezes, a 1a. pela doença física e a outra pelo esquecimento dos meios de descomunicação de sua terra.