19 de dezembro de 2022 6:03 por Da Redação
Decisivo e ainda em aberto, o voto evangélico é o principal alvo de disputa dos principais candidatos à presidência da República a um mês das eleições gerais, no dia 2 de outubro. Depois de ser eleito em 2018 com o apoio de 70% do eleitorado evangélico, o presidente Jair Bolsonaro perdeu parte do apoio desse segmento, embora siga à frente dos seus rivais.
Para pesquisadores e pastores de correntes progressistas, o candidato de extrema-direita se vale de um “pânico moral” instalado desde o último ciclo eleitoral no meio religioso, ajudado por parte da mídia e de grupos poderosos das mais variadas correntes cristãs.
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Além disso, também estaria a seu favor certa inabilidade dos líderes progressistas em se aproximar dos evangélicos, que representavam 31% da população, segundo o Instituto Datafolha, número que segue em crescimento.
“É importante considerar que estamos falando de um público, principalmente de evangélicos pentecostais, que foi muito beneficiado pelas políticas de inclusão social do PT. Muitos desses evangélicos veem o Bolsonaro como o candidato que protege a família, um aspecto importante, e ao mesmo tempo percebem o Lula como o candidato da prosperidade”, pondera o antropólogo Juliano Spyer, criador do Observatório Evangélico e autor do livro “Povo de Deus” (2020).
Mesmo diante de sucessivas crises econômicas e sociais geradas pelo atual governo, as pesquisas eleitorais divulgadas esta semana demonstram as diferenças entre os dois candidatos, que estariam mais próximos de um eventual segundo turno. No estudo divulgado pelo Ipec (ex-Ibope), Bolsonaro aparece com 48% das intenções de voto dos evangélicos, enquanto Lula abarca 26%. No do Genial/Quest, a diferença é ainda maior: 51% a 27%.
Em sua convivência durante a pesquisa de campo, Spyer tem se deparado com o voto de rejeição a um novo mandato petista, embora já perceba certa corrosão na popularidade do atual presidente. “O Bolsonaro certamente não é o candidato do coração, mas ele é o menos pior nesse caso. É quem fala abertamente sobre pautas morais, segundo seus entendimentos, e é a pessoa que levou evangélicos para ocupar cargos importantes no governo”, relata.
Alexandre Gonçalves, pastor da Igreja de Deus no Brasil, também descreve o clima de aversão ao PT e à figura de Lula nos diversos grupos de Telegram e Whatsapp dos quais é membro. Segundo ele, alguns deles chegam a ter mais de 5 mil participantes e figuras proeminentes de diferentes igrejas.
“Em 2018, havia um antipetismo, mas não tinha como associar o (Fernando) Haddad à corrupção. Com o Lula voltou toda essa história nos grupos. Tanto é que Bolsonaro foi orientado a falar sobre a Petrobras no debate presidencial (realizado pela TV Bandeirantes no dia 28 de agosto)”, afirma o pastor, que se diz preocupado com o desânimo de seus colegas para debater qualquer assunto. “Não estão mais batendo boca nos grupos. A pessoa joga ali um print, uma notícia, alguém reage, mas é só”.
A união entre conservadores bem diferentes
A aproximação de políticos da direita e extrema-direita com algumas correntes do público evangélico teria começado a ganhar outra dimensão no início da última década, especialmente após a eleição de Dilma Rousseff para seu primeiro mandato. Essa é a tese apontada pela antropóloga Livia Reis, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) sobre o início de uma onda conservadora associada a um antipetismo de proporções inéditas até então.
“A gente viu debates sobre aborto como um símbolo dessa mudança muito incisiva. Em 2014, houve acirramento da pauta religiosa e em 2018 foi o ápice. Foi o ano que começamos a ver circular vídeos falsos, fake news, essa prática que foi determinante em 2018”, afirma a antropóloga.
Ela também a construção feita ao longo dos anos sobre temas como identidade de gênero. “A religião tem sido usada para criar um pânico moral com relação a direitos sexuais e reprodutivos, que estão totalmente atrelados a direitos humanos do governo do PT, então acaba colando. Quando o Bolsonaro fala ‘Deus, Pátria e Família’, ele está mobilizando esses pânicos, o medo da desordem, da violação da infância. E isso passa por um preconceito muito grande sobre a sexualidade”, reforça.
Gonçalves menciona que comunga de um meio bastante conservador, acostumado a votar em candidatos considerados por eles “mais moderados”, como Fernando Collor, José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves. Atualmente, participa do Movimento Cristão Trabalhista, ligado ao PDT, junto a mais de 700 outros pastores, que tentam espalhar critérios mais racionais aos relegados por Bolsonaro.
“A gente está tentando fazer com que as pessoas não votem com o fígado, ou seja, não votar porque é contra fulano de tal, para evitar que fulano de tal volte, que é isso que estou vendo acontecer. Votar nas propostas que estão sendo apresentadas e não um voto de ódio”, enfatiza, mencionando uma espécie de guerra híbrida alimentada por aberrações como a “ameaça da ditadura do gayzismo”.
De onde surgiu essa rachadura?
Para Spyer, é de responsabilidade do próprio campo progressista o abismo que se estabeleceu com relação aos evangélicos. “Existe um desinteresse e uma percepção negativa sobre a função das igrejas, sempre foi vista como manipuladora. O pastor é ‘charlatão’ e os fiéis são ‘pobres coitados’, enquanto não se atenta para o fato etnográfico de que as pessoas melhoram de vida”, diz.
Segundo o antropólogo, o crescimento do número de evangélicos é talvez o maior fenômeno social contemporâneo, pois é ancorado na conversão espontânea e em um ativismo marcante. “Essa rede é muito interligada e se alimenta pelas próprias igrejas, seus membros, canais de comunicação, músicas e literatura próprias. A gente tem dificuldade de pensar outros lugares, outros âmbitos da sociedade que têm esse grau de interconexão”.
Há um entendimento de que, com exceção de Bolsonaro, as demais candidaturas também derrapam nas tentativas de aproximação com o eleitorado religioso. Apesar de discursar contra o aborto e ter comparecido à Marcha para Jesus, em julho, Simone Tebet (MDB) não possui muitos apoiadores entre os evangélicos, assim como Ciro Gomes (PDT), que tem buscado mencionar Deus, fé e passagens bíblicas em seus discursos.
Da parte da campanha petista, Spycer acredita que os acenos foram muito tímidos até agora, apesar de adesões importantes para dialogar com o campo mais conservador, como a do pastor Paulo Marcelo, da Assembléia de Deus. “Tenho a impressão de que não é porque causa desconforto com quem está nas igrejas de matriz afro, mas entre a classe média cosmopolita que veria isso com antipatia e que hoje é uma parte importante desse eleitorado que defende o presidente Lula”, teoriza.
Livia Reis discorda nesse sentido por observar algumas peculiaridades da religiosidade pentecostal, que segundo ela teria muito mais afinidade com os atuais sentidos de empreendedorismo e prosperidade. Segundo ela, há uma corrosão latente do estado de bem estar social e dos direitos trabalhistas, o que dialoga com valores como meritocracia e esforço individual.
“Não dá para falar só da falta de destreza do campo progressista. O problema é que a narrativa e o sistema econômico corroboram para que o discurso das igrejas façam mais sentido no mundo em que se vive”, aponta.
Por outro lado, ela também reconhece as queixas feitas pelos evangélicos sobre um forte preconceito que se criou em torno das suas crenças e estilos de vida. Além de desconsiderar-se a variedade de correntes e a heterogeneidade de valores, também são pouco difundidas as inúmeras contribuições feitas especialente às famílias mais pobres e vulneráveis nas periferias das cidades e no interior do país.
“Quanto menos o Estado consegue atender as demandas da população, mais a igreja se apresenta como alternativa, oferecendo ações de assistência, que são importantíssimas. Os jovens estão ali dentro da igreja aprendendo um instrumento musical, fazendo um esporte, então de certa forma estão protegidos dos perigos do mundo”, enaltece a pesquisadora, que também menciona os sentimentos de comunhão e a busca pela paz espiritual.
Reta final de campanha
Faltando cerca de um mês para o pleito, as campanhas devem intensificar os acenos ao eleitorado evangélico. Afinal, ainda há cerca de um terço de indecisos nesse nicho. Porém, há alguns sinais de esgotamento quanto à abordagem da política em ambientes religiosos, que podem desestimular candidaturas mais insistentes ou até afastar fiéis de suas igrejas e espaços de convivência.
“Acho que esse cansaço é multiplicado no caso da religião porque a expectativa é que a igreja ofereça um ambiente acolhedor, de contato com o sagrado, que fica muito prejudicado quando você tem dentro da igreja esse tipo de animosidade. O resultado disso, que a gente encontra em dados, é o crescimento do número de ‘desigrejados’, pessoas que se identificam como cristãs mas não têm uma igreja, especialmente entre jovens e adolescentes”, indica Spyer.
Para os partidos de esquerda, há um sentido de urgência nesse contato com os grupos religiosos também por influência das eleições legislativas. Isso porque um dos objetivos centrais da campanha é promover maior diversidade racial, cultural e de gênero para tentar reduzir o atual protagonismo da chamada Bancada da Bíblia no Congresso Nacional.
Para Livia, uma das chaves pode ser a aproximação com as mulheres evangélicas, que representam o maior foco de resistência a Bolsonaro dentro do segmento por diversas razões. “Não é à toa que a Michelle Bolsonaro entrou na campanha dessa forma. São essas mesmas mulheres que demonstram esse incômodo com as atitudes do presidente, com o desemprego, insegurança alimentar e perda de direitos trabalhistas”, defende.
“Um caminho é esquecer a religião e falar aquilo que o partido tem para falar. Ou seja, conquistas, crescimento e prosperidade”, opina Spyer: “A outra é abrir espaço para os religiosos evangélicos que estão no partido estabelecerem esse diálogo. Há evangélicos no MST, no PT, a deputada Benedita da Silva é um exemplo. É um caminho que o partido deveria começar a considerar, não só ele como outros partidos também”.