segunda-feira 25 de novembro de 2024

A macroeconomia do Covid-19

10 de julho de 2020 8:22 por Redação

Caro leitor, o título deste artigo pode lhe parecer meio estranho, mas, de fato, existem algumas especificidades na crise desencadeada pelo Covid-19 que configuram uma dinâmica macroeconômica bastante peculiar, com relação a observada nas crises globais anteriores como a de 2008 e de 1930.

A primeira especificidade é a velocidade com que impactou na economia global. O Covid-19 tem rapidamente se difundido pelo mundo e gerado choques econômicos com ritmo e intensidade acima dos observados na crise de 2008 e na grande depressão dos anos de 1930. Como chama atenção Nouriel Roubini (2020, p.1), em artigo publicado no Project Syndicate, “[…] nesses dois episódios anteriores, os mercados de ações caíram 50% ou mais, os mercados de crédito congelaram, as falências em massa seguiram- se, as taxas de desemprego subiram acima de 10%, e o PIB contraiu a uma taxa anualizada de 10% ou mais. Mas tudo isso levou cerca de três anos para acontecer. Na crise atual, resultados macroeconômicos e financeiros igualmente terríveis se materializaram em três semanas”. Não é sem razão que o Fundo Monetário Internacional (FMI), uma instituição bastante conservadora em suas projeções, estima em seu último World Economic Outlook queda no PIB mundial da ordem de -3,0%, em 2020.

O caráter sem precedentes dessa crise, que em termos de impacto econômico global está se configurando ser de dimensão maior que a gripe espanhola de 1918 (a qual ocorreu em meio a primeira Guerra Mundial), também está comprometendo a capacidade de se modelar com maior acurácia os desdobramentos econômicos e sociais do processo de propagação da doença. No início da crise, quando apenas a China havia sido atingida, a maioria dos analistas trabalhava com recuperação em V, queda acentuada e rápida retomada. Hoje já se fala em U, alguma demora para retomar, e alguns arriscam um L, crise com um período prolongado de estagnação econômica. Os mais pessimistas falam da possibilidade de um I, ou seja, queda por um bom tempo em função da crise financeira. O grande complicador e que explica esse amplo espectro de possibilidades é que o fator indutor da crise é um vírus em mutação, o qual tem se propagado em uma velocidade muito grande pelo mundo, impondo uma dinâmica macroeconômica bastante peculiar.

A pandemia provocada pelo Covid-19, também de maneira inédita, deixou as pessoas totalmente impotentes. Ou seja, não se pode transferir ao indivíduo, ante um problema de saúde pública, a decisão de ficar em casa e morrer de fome ou sair para trabalhar e correr o risco de ser  infectado pelo vírus. Principalmente quando se sabe que não há trade-off entre isolamento social (quarentena) e emprego. Em outras palavras, mesmo que a  população esteja disposta a correr risco de vida e decida trabalhar, o colapso do sistema de saúde poderá ter pronunciadas implicações econômicas e sociais. Aliás, as lições tiradas de países como EUA, Itália, Espanha, Reino Unido, são as de que a demora na adoção de medidas de isolamento social tem levado a um maior número de mortos e consequências econômicas muito mais severas. Para estes países, o FMI projeta retrações de -5,9%, -9,1%, -8,0% e -6,5%, respectivamente, em 2020.

Penso que a principal especificidade da crise está em sua natureza. Diferentemente da crise de 2008, uma crise financeira que se transformou em uma crise nos setores produtivos, a singularidade dessa crise em relação às demais está em seu gatilho. Não foi desencadeada por um choque de oferta decorrente de problemas na capacidade produtiva da economia, como sempre ocorre em economias atingidas por guerras, ou por razões de estouros de bolhas financeiras, como foi o caso da de 2008.  Os choques simultâneos, praticamente sem precedentes em escala global na oferta e demanda agregadas das economias, foram determinados, como já assinalado, pela estratégia de isolamento social (quarentena) adotada pelos governos para mitigar o contágio do Covid-19 na população, evitar o colapso do sistema de saúde e, deste modo, minimizar o número de mortos. Logo, a natureza desta crise é de saúde pública, com reflexos econômicos e sociais bastante perversos.

Tal natureza, por sua vez, traz duas implicações importantes. A primeira é que o isolamento social impõe uma dinâmica macroeconômica praticamente inédita na medida que  atinge tanto as cadeias de produção, uma vez que setores onde há maior aglomeração na prestação de serviços são paralisados, como também a demanda por bens e serviços já que as pessoas ficam confinadas em suas casas (vale ressaltar que é bem verdade que os setores não são atingidos na mesma proporção, uma vez que os reflexos sobre a oferta dependerão dos níveis de automação e de digitalização – home office – ou da maior interação homem-máquina, proeminentes nos setores industrial e do agronegócio e de menor relevância, principalmente no setor de serviços nas economias em desenvolvimento).

A segunda implicação da natureza dessa crise é que ao longo do surto viral as políticas macroeconômicas de mitigação da crise não terão um caráter keynesiano contracíclico, de estímulo à atividade econômica, tipicamente adotadas nas crises econômicas globais, mas de preservação da vida das pessoas e da estrutura econômica e social.  Em outras palavras, as políticas públicas terão que  evitar tanto a paralisia do sistema de saúde, como os efeitos negativos do lockdown sobre as famílias, empresas e bancos. Da eficácia ou não da intervenção do Estado na economia basicamente dependerá a capacidade de retomada da economia no pós-Covid-19. No caso de sucesso, sobreviveremos à tempestade, mas restará o dia seguinte que também exigirá um conjunto de medidas de estímulo à demanda, agora sim de caráter contracíclico, uma vez que o problema não será de oferta, dado que a capacidade produtiva da economia terá sido preservada.

Em artigo recente em parceria com a professora Luciana Santa Rita (https://portalseer.ufba.br/index.php/nit/article/view/36183 ) concluímos que a macroeconomia do Covid-19 deixou, mais uma vez, explícito que a redução expressiva da participação do Estado nos investimentos e políticas sociais não se sustenta em momentos de crise como o vivido atualmente. Nestes momentos, “somos todos keynesianos!”. Isso reforça a visão dos que sustentam o modelo empreendedor, como é o nosso caso, no qual há combinação virtuosa entre o Estado empreendedor, os empreendimentos privados e o bem-estar social. Essa é uma lição extremamente relevante que precisa estar no centro do debate que inexoravelmente surgirá no mundo pós-Covid-19.

Reynaldo Rubem Ferreira Jr (Professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEAC – da UFAL)

Todas as postagens são de inteira responsabilidade do blogueiro.

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