sexta-feira 22 de novembro de 2024

SÃO PEDRO – O PESCADOR PADROEIRO

29 de junho de 2020 6:56 por Fátima de Sá

Pedro, o pescador

Em várias cidades do Brasil, no dia 29 de junho, há procissão de jangadas ou canoas, em homenagem a São Pedro, o santo que na Bíblia – o livro cristão – representa os pescadores. Eles são trabalhadores que aprendem segredos e desafios das águas onde passam grande parte dos seus dias. E por que lembrei disso? Porque hoje quero homenagear os pescadores e as pescadoras artesanais, católico(a)s ou não, na figura de um pescador católico praticante que se engajou na luta em defesa da categoria desde que encontrou a Bíblia nas Comunidades Eclesiais de Base, em 1969. Não é um Pedro, é um Antônio, conhecido como Toinho Pescador.

Toinho pescador às margens do Velho Chico. Foto: Valdir Rocha
O prefácio 

No Prefácio da 1ª edição do seu livro Pescando Cidadania, escrevi, em 2003: “Transmitindo seu saber, seu Toinho manifesta sua tristeza com a forma como tratam as águas, os peixes e, por consequência, os pescadores artesanais. Em seus poemas, ele mostra também a indignação e revolta com o desrespeito traduzido na irresponsabilidade, no descompromisso e na omissão de muitos ‘donos do poder’ e governantes com o trato dos recursos comuns”.

Nesse livro, estão reunidos poemas de Antônio Gomes dos Santos que, além de pescar peixes e cidadania, faz poesias desde a sua infância, em Penedo, onde nasceu em 12/12/1931, e vive até hoje.

Mais tarde, novos poemas foram adicionados a uma 3ª edição, em 2016. E o Prefácio foi repetido por continuar atual. Mais uma vez, nenhuma melhora ocorreu em relação ao que ali está denunciado. Assim, reproduzo-o aqui. “Os ‘projetos de desenvolvimento’ têm sido elaborados e implantados sem a participação da categoria que tem nas águas seu meio de produção. Historicamente, tem-se constatado o desrespeito aos pescadores artesanais por muitos tecnocratas de gabinete e de campo que tentam ignorá-los como se eles sequer existissem. A tentativa de eliminá-los não os reconhecendo traduz-se na ocupação desordenada e no lançamento de efluentes poluidores em rios, lagos, lagoas, córregos, lagunas, estuários e zona costeira”.

Histórico

Em documento da Pastoral dos Pescadores [i], estão descritos antecedentes da organização da categoria, de onde eu “pesquei” três fatos históricos. Assim, em 1846, primeiramente houve a regulamentação da atividade pesqueira com a criação de Distritos e Capatazias de Pesca. Ali teve início o recrutamento de pescadores para a Marinha de Guerra. Por outro lado, em 1910, ocorreu a conhecida “Revolta da Chibata”, onde grande parte dos marujos era proveniente de comunidades pesqueiras. Por fim, em 1912, um comandante da Marinha começou a organizar os serviços de pesca no Brasil, em dois grandes ramos: à Marinha coube dirigir os pescadores, as embarcações e fiscalizar a pesca, enquanto o Ministério da Agricultura assumiu a educação e saúde dos pescadores, o comércio do pescado e a pesquisa.

Reconhecimento

No site da CNPA [ii] consta a informação de que a Marinha decidiu recrutar pescadores. E consideraram: “[…] pois ninguém melhor que os pescadores conhecem os ‘segredos’ de rios e mares. Os conhecimentos, adquiridos e sistematizados durante décadas, eram de interesse da Marinha. Eles detêm um mapa mental sobre a geografia do lugar, conhecem rios, furos, canais, atalhos, lugares rasos e fundos que eram de interesse do Estado. E é verdade. No entanto, algum tempo depois, a Marinha considera que “as relações instituídas entre pescadores e Estado se caracterizavam pelo paternalismo e assistencialismo”. Ou seja, após apossarem-se dos conhecimentos dos pescadores, passaram a não valorizá-los, tanto que nunca houve inclusão social. E tais conhecimentos foram adquiridos por esforços dos próprios pescadores, para a sobrevivência deles e do patrimônio cultural que é repassado de geração a geração em centenas de anos. Portanto, não houve “paternalismo e assistencialismo”, mas uma via de mão dupla que deveria ser reconhecida e valorizada.

Dia Mundial da Pesca Artesanal

O Conselho Pastoral dos Pescadores, no site da CPT [iii] informou que, desde 2004, sempre em 21 de novembro – quando também é comemorado o Dia Mundial da Pesca Artesanal – acontece o Grito da Pesca, “com mobilizações e reflexões nacionais em favor dos povos das águas e dos ecossistemas que compõem os territórios pesqueiros”.

E explica: “A data faz referência à Revolta da Chibata, acontecida no Rio de Janeiro, em 1910, quando marinheiros afro-brasileiros, que originalmente eram pescadores, fizeram um motim contra as chibatadas que recebiam dos oficiais brancos da Marinha”. O líder da Revolta foi o Comandante João Cândido Felisberto, que nasceu no dia 24/06/1880 em Encruzilhada do Sul – RS, homenageado na canção de João Bosco e Aldir Blanc, O Mestre-Sala dos Mares (Há muito tempo nas águas da Guanabara / O dragão no mar reapareceu / Na figura de um bravo feiticeiro / A quem a história nunca esqueceu...).

Dragões do Mar

E o Dragão do Mar, a que se referiu Aldir, foi outro herói negro [iv], Francisco José do Nascimento, nascido em 15/04/1839, na praia de Canoa Quebrada, Aracati – CE, filho do pescador Manoel do Nascimento e de Matilde Maria da Conceição. Chico de Matilde, como ficou conhecido, ficou órfão de pai aos oito anos de idade. Aprendeu a ler aos 20. Foi marinheiro e prático na Capitania dos Portos do Ceará. Jangadeiro e abolicionista. Por isto, seu nome ficou na história como símbolo da resistência popular contra a escravidão, por ter bloqueado o porto de Fortaleza, impedindo o embarque de escravos.

Ambos foram homenageados por Seu Toinho no poema Pescadores do Brasil lutando por libertação. Ele disse: “A nossa luta começou na praia do Ceará / Onde nasceu Nascimento, o primeiro Dragão do Mar / Pelo desempenho de luta para os escravos libertar / E criar uma sociedade para se fortificar / Sabendo que corria o risco  até de se desempregar / Pois trabalhava na Marinha e tinha que se revoltar…”. Alguns versos depois, prossegue: “Todos que embarcavam estavam sujeitos a apanhar / Os pescadores eram os primeiros porque viviam no mar / Tinham conhecimentos práticos e não podiam faltar / Quando assume João Cândido, o segundo Dragão do Mar / Como chefe foi escolhido para logo governar / Foi quando viu Marcelino, duzentas chibatadas levar…”.

Chico de Matilde, o Dragão do Mar
O Grito da Pesca

Mas, em atividade do Grito da Pesca, no Congresso Nacional, em 2019, pescadores e pescadoras refletiram: “ Hoje, passados mais de cem anos, pescadores e pescadoras continuam sendo desrespeitados […].  As chibatadas, hoje, aparecem em forma de suspensão de benefícios, de direitos trabalhistas e sociais, da negação da identidade da pescadora e do pescador artesanal, e o ataque às demandas desses profissionais, exemplificadas pelos danos socioambientais do óleo nas praias do nordeste e as queimadas da Amazônia”. Da mesma forma, a especulação imobiliária se apropria de territórios historicamente ocupados por comunidades tradicionais de pescadores e atividades turísticas que, em vez de incluir pescadores e pescadoras em suas atividades, excluem-no(a)s para longe dos seus locais de trabalho e moradia.

Territórios Pesqueiros

Da mesma forma, na Campanha pelo Território Pesqueiro [v], pescadores e pescadoras reconhecem: “ Ao ignorar a importância econômica, social e cultural da pesca artesanal, o Estado brasileiro investe em políticas desenvolvimentistas que favorecem o avanço de grandes projetos econômicos em áreas historicamente utilizadas pelas comunidades tradicionais, ameaçando seu território e patrimônio cultural. A situação se agrava na medida em que o governo, através da pressão de empresários e latifundiários, busca flexibilizar a legislação ambiental a fim de favorecer a expansão do agro e hidronegócio, inclusive nas áreas de preservação permanente  (manguezais e matas ciliares)”.

Resumindo, podemos rezar a São Pedro para interceder nos céus, mas acima de tudo, a luta aqui na terra tem que continuar!

 

[i] CPP. Comissão Pastoral dos Pescadores. Pescadores rumando para novas águas. O Leme: informativo nacional, v.9, n.65, nov. 1981

[ii] CNPA. Confederação Nacional dos Pescadores e Aquicultores.  Conheça a CNPA. Disponível em: http://www.cnpa.org.br/conhecaCnpa.aspx. Acesso em: 27 de junho de 2019.

[iii] CPT. Comissão Pastoral da Terra. Pescadores e pescadoras artesanais entregam 200 mil assinaturas em defesa dos territórios pesqueiros no Congresso Nacional. Disponível em:

https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/acoes-dos-movimentos/5007-pescadores-e-pescadoras-artesanais-entregam-200-mil-assinaturas-em-defesa-dos-territorios-pesqueiros-no-congresso-nacional. Acesso em: 25 fev. 2020.

[iv] O Dragão do Mar na história do Ceará. Disponível em: http://www.dragaodomar.org.br/institucional/dragao-do-mar-na-historia-do-ceara. Acesso em: 28 jun. 2020.

[v] CPP. Conselho Pastoral Dos Pescadores.  Campanha pelo Território Pesqueiro. Disponível em: http://cppnacional.org.br/campanhas/campanha-pelo-territ%C3%B3rio-pesqueiro. Acesso em: 29 jun 2020.

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