sexta-feira 26 de abril de 2024

‘O afinador de silêncios’ – Mia Couto

Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural.

7 de agosto de 2021 6:58 por Revista Prosa e Arte

 

Mia-Couto. Foto: Jair Bertolucci

Eu, Mwanito, o afinador de silêncios
(Excerto)

Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou deus.
[…]
– Sophia de Mello Breyner Andresen

 

A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez. Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.

— Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.

Ao fim do dia, o velho se recostava na cadeira da varanda. E era assim todas as noites: me sentava a seus pés, olhando as estrelas no alto do escuro. Meu pai fechava os olhos, a cabeça meneando para cá e para lá, como se um compasso guiasse aquele sossego. Depois, ele inspirava fundo e dizia:

— Este é o silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.

Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim, era um dom natural, herança de algum antepassado. Talvez fosse legado de minha mãe, Dona Dordalma, quem podia ter a certeza? De tão calada, ela deixara de existir e nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes viventes.

— Você sabe, filho: há a calmaria dos cemitérios. Mas o sossego desta varanda é diferente.

Meu pai. A voz dele era tão discreta que parecia apenas uma outra variedade de silêncio. Tossicava e a tosse rouca dele, essa, era uma oculta fala, sem palavras nem gramática.

Ao longe, se entrevia, na janela da casa anexa, uma bruxuleante lamparina. Por certo, meu irmão nos espreitava. Uma culpa me raspava o peito: eu era o escolhido, o único a partilhar proximidades com o nosso eterno progenitor.

— Não chamamos o Ntunzi?

— Deixe o seu irmão. É consigo que mais gosto de ficar sozinho.

— Mas estou quase a ter sono, pai.

— Fique só mais um pouco. É que são raivas, tantas raivas acumuladas. Eu preciso afogar essas raivas e não tenho peito para tanto.

— Que raivas são essas, meu pai?

— Durante muitos anos alimentei feras pensando que eram animais de estimação.

Queixava-me eu do sono, mas era ele quem adormecia. Deixava-o cabeceando na cadeira e regressava para o quarto onde Ntunzi, desperto, me esperava. O meu irmão me olhava com mistura de inveja e comiseração:

— Outra vez essa treta do silêncio?

— Não diga isso, Ntunzi.

— Esse velho enlouqueceu. E o pior é que o gajo não gosta de mim.

— Gosta.

— Por que nunca me chama a mim?

— Ele diz que sou um afinador de silêncios.

— E você acredita? Não vê que é uma grande mentira?

— Não sei, mano, que hei-de fazer se ele gosta que eu fique ali, todo caladito?

— Você não percebe que isso é tudo conversa? A verdade é que você lhe traz lembranças da nossa falecida mãe.

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Mil vezes Ntunzi me fez recordar o motivo por que meu pai me elegera como predilecto. A razão desse favoritismo sucedera num único instante: no funeral da nossa mãe, Silvestre não sabia estrear a viuvez e se afastou para um recanto para se derramar em pranto. Foi então que me acerquei de meu pai e ele se ajoelhou para enfrentar a pequenez dos meus três anos. Ergui os braços e, em vez de lhe limpar o rosto, coloquei as minhas pequenas mãos sobre os seus ouvidos. Como se quisesse convertê-lo em ilha e o alonjasse de tudo que tivesse voz. Silvestre fechou os olhos nesse recinto sem eco: e viu que Dordalma não tinha morrido. O braço, cego, estendeu-se na penumbra:

— Alminha!

E nunca mais ele proferiu o nome dela. Nem evocou lembrança do tempo em que tinha sido marido. Queria tudo isso calado, sepultado em esquecimento.

— E você me ajude, meu filho.

Para Silvestre Vitalício, a minha vocação estava definida: tomar conta dessa insanável ausência, pastorear demónios que lhe abocanhavam o sono. Certa vez, enquanto partilhávamos sossegos, arrisquei:

— Ntunzi diz que lhe faço lembrar a mãe. É verdade, pai?

— É o contrário, você me afasta das lembranças. Esse Ntunzi é que me traz espinhos do antigamente.

— Sabe, pai? Ontem sonhei com a mãe.

— Como pode sonhar com alguém que nunca conheceu?

— Eu conheci, só não me lembro.

— É a mesma coisa.

— Mas recordo a voz dela.

— Qual voz dela? Dordalma quase nunca falava.

— Recordo um sossego que parece, sei lá, parece água. Às vezes penso que me lembro da casa, o grande sossego da casa…

— E Ntunzi?

— Ntunzi o quê, pai?

— Ele insiste que se recorda da mãe?

— Não há dia em que ele não se recorde dela.

Meu pai nada respondeu. Ruminou um novelo de resmungos e, depois, com voz rouca de quem foi ao fundo da alma, afirmou:

— Vou dizer uma coisa, nunca mais vou repetir: vocês não podem lembrar nem sonhar nada, meus filhos.

— Mas eu sonho, pai. E Ntunzi se lembra de tanta coisa.

— É tudo mentira. O que vocês sonham fui eu que criei nas vossas cabeças. Entendem?

— Entendo, pai.

— E o que vocês lembram sou eu que acendo nas vossas cabeças.

O sonho é uma conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas. Mas já não havia nem falecidos nem território das almas. O mundo tinha terminado e o seu final era um desfecho absoluto: a morte sem mortos. O país dos defuntos estava anulado, o reino dos deuses cancelado. Foi assim que, de uma assentada, meu pai falou. Até hoje essa explanação de Silvestre Vitalício me parece lúgubre e confusa. Porém, naquele momento, ele foi peremptório:

— É por isso que vocês não podem nem sonhar nem lembrar. Porque eu próprio não sonho, nem lembro.

— Mas, pai, o senhor não tem memória da nossa mãe?

— Nem dela, nem da casa, nem de nada. Já não me lembro de nada.

E ele se ergueu, rangente, para esquentar o café. Os passos eram de embondeiro que vai arrancando as próprias raízes. Olhou o fogo, fez de conta que se mirava num espelho, fechou os olhos e aspirou os perfumosos vapores da cafeteira. Ainda de olhos fechados, sussurrou:

— Vou dizer um pecado: deixei de rezar quando você nasceu.

— Não diga isso, meu pai.

— Estou-lhe a dizer.

Uns têm filhos para ficarem mais perto de Deus. Ele se convertera em Deus desde que era meu pai. Assim falou Silvestre Vitalício. E prosseguiu: os falsos tristes, os maus solitários acreditam que os lamentos sobem às alturas.

— Mas Deus está surdo — disse.

Fez uma pausa para erguer a chávena e saborear o café e, depois, rematou:

— Mesmo que não estivesse surdo: que palavra há para falar a Deus?

Em Jesusalém, não havia igreja de pedra ou cruz. Era no meu silêncio que meu pai fazia catedral. Era ali que ele aguardava o regresso de Deus.

***

– Mia Couto, excerto do capitulo “Eu, Mwanito, o afinador de silêncios” | Livro Um – Humanidade, no livro “Antes de Nascer o Mundo“. (romance). São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2009 | ou livro “Jesusalém”. Lisboa/Portugal: Editorial Caminho, 2009.

Saiba mais sobre Mia Couto:

Mia Couto – o afinador de silêncios (biografia)
Mia Couto – fortuna crítica
Mia Couto – neste site (entrevistas, poemas, contos e crônicas)

 

 

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