sexta-feira 17 de maio de 2024

Os direitos de quem vai dar à luz. E os protocolos médicos

Normas e condutas recomendadas por entidades de saúde asseguram atendimento humanizado e respeito da autonomia da mulher, mas nem sempre são respeitadas. Conheça as leis e garantias das gestantes no Brasil
Grávida realiza pré-natal | Mateus Pereira/Governo da Bahia

Por Isadora Rupp, do Nexo Jornal

O caso do médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra, preso em flagrante na segunda-feira (11) por estuprar uma mulher grávida que realizava uma cesariana no Hospital da Mulher em São João do Meriti, no Rio de Janeiro, trouxe ao debate a garantia dos direitos legais às gestantes no Brasil.

Funcionárias da equipe de enfermagem do hospital já desconfiavam da conduta de Bezerra – ele ficava dentro do espaço do campo cirúrgico, uma espécie de pano na cor verde ou azul que isola a paciente, e formava uma espécie de “cabana”. Isso impedia que qualquer pessoa que não fosse ele visualizasse a mulher do pescoço para cima.

As profissionais conseguiram gravar um vídeo do médico, e o flagraram colocando o pênis na boca da paciente inconsciente. Por ter recebido sedativo, a mulher mal se recorda do parto, tampouco da violência. Bezerra aproveitou para cometer o estupro no momento em que o marido, acompanhante da gestante, deixou o centro cirúrgico para acompanhar o bebê nos cuidados após o parto.

Neste texto, o Nexo mostra quais leis e normas garantem a segurança das mulheres na hora de dar à luz, e os procedimentos médicos e condutas indicados pelas entidades e organizações de saúde.

Contexto de violência

Em entrevista ao site Universa UOL, o presidente da AMB (Associação Médica Brasileira), César Fernandes, disse que a violência sexual e obstétrica cometida por Giovanni Quintalla Bezerra é um “exemplo macabro”, e que não pode ser entendido como algo que ocorre cotidianamente nos hospitais. Dados, entretanto, apontam que o crime não é tão incomum. Números do ISP (Instituto de Segurança Pública) levantados pelo jornal O Globo via Lei de Acesso à Informação apontam que 177 casos de estupro ocorreram em hospitais, clínicas ou similares entre 2015 e 2021 apenas no Rio de Janeiro. Ou seja, um caso a cada duas semanas em média.

“O caso do anestesista não é nem um pouco surpreendente para nós que estamos na trincheira da advocacia feminista. É um problema endêmico nas profissões da área da saúde, porque em todas as situações em que homens têm acesso ao corpo das mulheres, isso vai acontecer”, escreveu no Twitter a advogada criminal Maira Pinheiro, que atua na área do direito das mulheres.

Marcha pela Humanização do Parto em Florianópolis-SC | Fora do Eixo/Creative Commons

Segundo Pinheiro, é necessário que os conselhos profissionais de saúde reconheçam que o problema é amplo e disseminado na área. “Sem isso, esses caras, que são muitos, serão tratados como malucos, casos isolados. Tem que encher hospital de câmera e inserir medidas de prevenção de violência sexual nos checklists.”

A Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) divulgou em nota que está elaborando uma campanha nacional de educação e conscientização sobre violência contra a mulher. O governador do Rio, Cláudio Castro (PL), anunciou que a Secretaria de Saúde estuda um protocolo para melhorar a capacitação dos profissionais, mas se opõe à instalação de câmeras nos hospitais, por exemplo.

A pesquisa Nascer no Brasil, coordenada pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, vinculada à Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) com a participação de várias instituições de ensino e pesquisa, mostra que 36% das mães brasileiras sofrem com maus-tratos na hora do parto. O índice sobe para 45% quando o recorte é feito no SUS.

Falta de capacitação

Embora leis e resoluções do Ministério da Saúde, da Agência Nacional de Saúde e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) orientem as boas práticas no parto, seja ele normal ou cesárea, os conselhos médicos não contam com capacitações específicas sobre violência sexual e obstétrica.

A paciente do Rio, além de ter sido vítima de estupro, crime previsto no Código Penal, também foi vítima de violência obstétrica, expressão utilizada para reconhecer abusos, mas que não tem tipificação penal.

Segundo a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, o termo nomeia toda ação ou omissão direcionada à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, praticado sem consentimento explícito ou que desrespeite a sua autonomia. O que inclui práticas como:

  • Abuso físico ou mental da gestante
  • Restrição de estar acompanhada
  • Negar alívio de dor no parto
  • Falta de estrutura no atendimento
  • Realizar procedimentos na mulher sem seu consentimento
  • Usar frases desrespeitosas, fazer piadas ou ameaças
  • Separar a mãe do bebê após o parto sem justificativa clínica

Reconhecida em 2014 como uma questão de saúde pública pela OMS (Organização Mundial da Saúde), a punição de casos de violência obstétrica no Brasil fica restrita a interpretações de juízas e juízes, pois não há legislação nacional, ao contrário de países como a Argentina, onde o crime é caracterizado. Algumas das condutas de profissionais no Brasil são enquadradas em lesão corporal, omissão de socorro e crimes contra a honra, e o profissional pode ser punido levando em conta a legislação sobre cada um dos crimes.

Muitos se opõem ao termo violência obstétrica. O site The Intercept Brasil revelou que o Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) procurou a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para reclamar de um curso online que ensina sobre o tema, alegando que as aulas têm o intuito de “instigar” as mulheres a denunciarem médicos e especialistas em obstetrícia.

Além do Cremesp, no Brasil o termo foi questionado pelo próprio Ministério da Saúde, que emitiu um documento em 3 de maio de 2019 que determinou a suspensão dele em normas e políticas públicas, embora ele seja consolidado na literatura científica. A decisão acabou caindo após recomendação do Ministério Público Federal, e a pasta assumiu a legitimidade.

Leis e garantias das gestantes no Brasil

LEI DO ACOMPANHANTE

A lei 11.108/2005 garante às parturientes o direito à presença de um acompanhante durante todo o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato no SUS (Sistema Único de Saúde). O acompanhante pode ser marido, mãe, amiga ou qualquer pessoa de confiança da gestante.

RESOLUÇÃO N° 36 DA ANVISA

Na norma da Anvisa foi ampliado o direito do acompanhante garantido no SUS desde 2005 também para a rede privada. Todos os serviços de Atenção Obstétrica devem permitir que a gestante esteja na presença de alguém de sua confiança em todas as fases.

RESOLUÇÃO NORMATIVA 211 DA ANS

Desde 2010, está garantido em resolução da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que regulamenta os planos de saúde no Brasil, que as despesas dos acompanhantes da parturiente sejam arcadas pelos convênios.

CADERNETA DA GESTANTE

O documento do Ministério da Saúde, elaborado e entregue às gestantes no SUS, reúne os direitos da mulher antes e depois do parto, cartão de consultas e exames, informações sobre amamentação e documentação da criança. O mecanismo, que era referência por seguir o viés do parto humanizado, foi alterado em 2022, e voltou a incluir uma série de procedimentos obsoletos, o que rendeu críticas de entidades.

PRESENÇA DE DOULAS

As profissionais conhecidas por prestar assistência emocional e psicológica para mães da gestação ao parto podem estar presentes no momento do parto em estados que contam com leis estaduais sobre o tema. É o caso do Rio de Janeiro (Lei 9.135/2020) e do Paraná (Lei 21.053/2022). Ambas não excluem o direito a um acompanhante.

PLANO DE PARTO

O documento não é obrigatório, mas recomendado por entidades como a OMS (Organização Mundial da Saúde). Nele, que pode ser escrito de próprio punho ou digital, a parturiente indica tudo o que ela deseja que ocorra no trabalho de parto, desde liberdade para escolher a posição mais confortável até luzes do ambiente e tipo de sedação (ou ausência) em casos de parto normal. O plano também era encorajado pelo Ministério da Saúde, mas foi retirado da última versão da Caderneta da Gestante publicada em 2022, que excluiu o tópico.

Práticas obsoletas e o excesso de cesáreas

A OMS recomenda que os países mantenham, idealmente, taxas de até 15% dos partos cesarianos – que consiste em uma intervenção cirúrgica para a retirada do bebê por via abdominal, com um corte feito acima da púbis da gestante. No Brasil, a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mostra que essa porcentagem é de 55%.

O encorajamento ao parto cirúrgico sem uma recomendação médica clara ou situação que coloque em risco a mãe ou o bebê também pode ser enquadrado como violência obstétrica.

84,76% dos partos realizados por planos de saúde ou privados foram realizados por cesariana no Brasil em 2019, segundo Painel de Indicadores de Atenção Materna e Neonatal

A cirurgia só pode ser realizada sem indicação médica se esse for desejo da mãe, e a partir das 39 semanas. E há mecanismos para uma cirurgia humanizada: a utilização do campo médico transparente para que a mulher acompanhe com clareza o que está acontecendo, e o contato pele a pele, quando o bebê é colocado o mais rápido possível junto da mãe assim que nasce, prática mais comum em partos normais e que, às vezes, é negada para mulheres que passam pela cirurgia.

Na cesariana, a anestesia é necessária por se tratar de uma cirurgia, e é realizada por um anestesista. A sedação, no entanto, não é necessária, justamente para que a mulher não perca o momento do parto. Giovanni Quintella Bezerra, que estuprou a paciente no Rio, utilizava medicamentos como Propofol e Ketamina, raras nesses procedimentos. A Polícia Civil investiga se o médico utilizava doses acima das recomendadas.

Giovanni Bezerra foi preso por estuprar paciente durante o parto | Reprodução/Instagram

Outro dado preocupante, segundo a ANS, é que 56,71% das cesáreas no país foram realizadas antes do trabalho de parto começar e de modo precoce, entre 37 e 38 semanas de gestação. Uma gestação dura entre 40 e 42 semanas.

A Febrasgo, o SUS e a OMS elencam boas práticas para o parto com base em evidências e estudos científicos. Por isso, alguns procedimentos comuns há décadas são desencorajados hoje, como a manobra de Kristeller (o profissional sobe na barriga da mulher com o intuito de empurrar o bebê). Mesmo ultrapassada, a pesquisa Nascer no Brasil aponta que ela ainda é utilizada em 37% dos partos.

Além disso, a Febrasgo cita o uso de soro com ocitocina, utilizado para acelerar o parto. A entidade alerta que há indicação na minoria dos partos, quando as contrações estão lentas. Por isso, a técnica deve ser usada com parcimônia e com respaldo médico claro.

A entidade também tem uma diretriz que contraindica aos médicos obstetras a realização da episiotomia (incisão na região do períneo para facilitar a passagem do bebê) como a primeira opção, e sem o aval da parturiente. Segundo a ONG Artemis, organização civil cujo foco é a erradicação da violência obstétrica, o procedimento é necessário em cerca de 15% dos casos, mas é praticada em mais de 90% dos partos hospitalares da América Latina.

Raspagem dos pelos pubianos, lavagem intestinal e uso da posição deitada para o trabalho de parto são outras rotinas em hospitais privados e públicos que devem ser desencorajadas, segundo a OMS. Logo, a mulher pode negar todos eles caso seja sua vontade.

O reconhecimento dos direitos

O conjunto de leis e normas que versam sobre direitos e saúde garantem à mulher que sua vontade seja respeitada em todas as fases do parto e receba um atendimento humanizado e sem abusos.

De acordo com o IBDFAM (Instituto Brasileiro do Direito de Família), caso seus direitos não sejam cumpridos pelas instituições de saúde, as gestantes podem exigir que se proceda por meio de ação judicial, via reclamação no Ministério Público e nos conselhos municipais, estaduais e nacionais que se dedicam ao tema, como o de Saúde e Assistência Social. Casos de violência obstétrica também podem ser denunciados via Central de Atendimento à Mulher (ligue 180) e pelo Disque Saúde 136.

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