sexta-feira 10 de maio de 2024

O que falta para desintegrar o bolsonarismo

Freud mostrou que as massas alienadas se mantêm coesas mesmo na ausência do líder que as forjou. Os laços libidinais que as unem só serão quebrados com a garantia da justiça e do limite, restituindo a cada pessoa sua humana fragilidade
Foto: Divulgação

Por Eduardo Guimarães, do blog Outras Palavras

O fenômeno do bolsonarismo levou diversos psicanalistas, pesquisadores das ciências humanas e interessados em geral a recorrerem à obra freudiana Psicologia das massas e análise do eu, publicada em 1921. Não foi nem a primeira nem a última vez que o psicanalista Sigmund Freud dedicou tempo e interesse a investigar temas sociais ou antropológicos – a monografia A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno (1908), a coletânea de ensaios Totem e tabu (1912-1913) e a monografia Moisés e o monoteísmo (1939) são apenas alguns exemplos da importância que Freud atribuía às referências sociais e coletivas para delimitar o domínio da psicanálise. No entanto, Psicologia das massas encontrou no século XX e mesmo nesse início do século XXI uma posição ímpar.

Frequentemente, Psicologia das massas é interpretada como uma antecipação em quase 15 anos do que se tornariam as organizações nazistas alemãs. Vale lembrar que o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, derivado do Partido dos Trabalhadores Alemães, que esteve em funcionamento entre 1919 e 1920, foi fundado em 1920 (ano de redação de Psicologia das massas e análise do eu), mas alavancou Hitler ao poder somente em 1933. Mas essa não é a única interpretação possível da obra freudiana.

Se nos voltarmos para trás, podemos entender Psicologia das massas como uma investigação fortemente influenciada pelo fim da Primeira Guerra (1914-1918). O impacto desse conflito mundial na história da Europa e, particularmente, na história da psicanálise não pode ser menosprezado. A entrada na clínica de ex-combatentes que haviam vivenciado experiências traumáticas e que sofriam daquilo que foi nomeado como neurose de guerra, hoje mais comumente conhecido como TEPT (Transtorno do Estresse Pós-Traumático), contribuiu para provocar profundas transformações na clínica e na teoria psicanalíticas. Entretanto, a Primeira Guerra também teria possibilitado a investigação de um fenômeno libidinal fundamental para os laços sociais: o pânico.

Por conta do discurso neoliberal, que promove a hiperindividualização do sofrimento humano, o pânico é reduzido a um fenômeno individual. Mas o pânico também é ou pode ser um fenômeno coletivo. E é desse ponto de vista que Freud o investiga, seja em seu contexto militar, quando esse fenômeno ameaça desintegrar a massa de soldados em combate, seja em seu contexto religioso, quando os fiéis perdem a referência que os mantinha em comunhão.

Sem pretender uma definição rigorosa, em Psicologia das massas o pânico é entendido como um medo que excede determinada medida, ou seja, é um medo desmedido que não encontra justificativa. Deve ser situado na relação entre a magnitude do perigo e a intensidade das ligações libidinais. Por fim, quando se manifesta coletivamente, o pânico é a manifestação da desintegração da massa.

A desintegração da massa não ocorre pelo desaparecimento do líder. O líder pode ter se escondido no banheiro, ter pedido asilo político em outro país ou mesmo ter viajado para o estado da Flórida, nos Estados Unidos. Ainda assim, a massa pode permanecer coesa, pois os laços libidinais mantidos com o líder, ainda que desaparecido ou distante, são conservados com a mesma ou maior intensidade. Em casos extremos, como a morte do líder, ainda assim os vínculos libidinais podem ser transferidos para um novo líder – e a massa segue forte e coesa.

Se está bem estruturada libidinalmente, a massa é capaz de enfrentar os perigos mais temíveis e os ataques mais ameaçadores. Denúncias de corrupção, acusações de genocídio, perda de apoio de outros líderes, incompetência política, obscurantismo, convicção pela ignorância… nenhum desses inimigos é suficientemente forte para desintegrar uma massa cujos laços dos indivíduos entre si e desses com o líder se mantêm libidinalmente intensos.

O maior inimigo da massa, seja ela política ou religiosa, portanto, não é o desaparecimento do líder ou as acusações feitas por seus inimigos, e sim o desaparecimento dos vínculos libidinais com o líder. Se esses vínculos são rompidos, imediatamente são rompidos os vínculos dos indivíduos entre si. É nesse exato momento que se manifesta a expressão coletiva do pânico.

A desintegração da massa não é provocada pelo pânico, mas o pânico é o efeito de ruptura ou afrouxamento dos vínculos libidinais da massa com o líder. Nesse momento, qualquer desavença ou pequena ameaça pode ser superestimada. Rapidamente surgem os traidores e as revelações mais comprometedoras. O líder já não é mais capaz de manter a massa coesa. O pânico tomou conta de todos. O desamparo tomou conta de todos.

O filósofo esloveno Slavoj Žižek escreveu a respeito do pânico coletivo e da desintegração da massa referindo-se ao escritor soviético Alexander Fadeyev (1901-1956). De acordo com algumas fontes, Fadeyev teria cometido suicídio por conta das denúncias sofridas pelo stalinismo durante o período em que Nikita Khrushchev foi secretário do Partido Comunista. Fadeyev teria ficado abalado por haver denúncias contra o stalinismo? Não, pois os países ocidentais nunca deixaram de o fazê-lo. Haveria algo novo no conteúdo das denúncias? Também não, pois Fadeyev, segundo Žižek, já teria tido conhecimento desse conteúdo. O que, então, havia de novo nisso tudo? Era o próprio Partido Comunista que fazia as denúncias. Ao fazer isso, o Partido Comunista estabelecia uma divisão em seu interior, comprometendo sua coesão e os vínculos libidinais com seus membros. O suicídio de Fadeyev seria a expressão do pânico que havia sido estabelecido por conta do afrouxamento dos vínculos libidinais com o líder – nesse caso, o Partido Comunista.

O bolsonarismo tem sido conservado, em grande medida, por conta da manutenção dos vínculos libidinais da massa com seu líder. Somente quando esse líder voltar atrás, perseguir seus aliados, trair seus próprios princípios; enfim, somente quando esse líder se mostrar dividido para sua massa, quando ele se tornar inimigo de si mesmo, talvez, nesse momento, o bolsonarismo comece a enfraquecer. E como se consegue isso? Empunhando como lema o grito: “SEM ANISTIA!” O líder do bolsonarismo e sua massa devem saber que não haverá anistia para seus crimes, que haverá justiça. O que um fascista mais teme não é um inimigo – pois os fascistas se reúnem em torno de um inimigo em comum –, e sim a justiça e o limite. Quando enredado na justiça, o fascista perde sua coesão e sua unidade para se mostrar dividido – como todo e qualquer ser humano. O fascismo recua quando seu séquito se percebe como apenas mais um aglomerado de seres humanos. Por isso é que não se deve recuar nesse momento. Mais uma vez: SEM ANISTIA!

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