sexta-feira 26 de abril de 2024

Recordações do Bar do Milton

Por Marcos de Farias Costa

26 de maio de 2023 8:14 por Da Redação

Luizinho Sete Cordas (camisa preta)) e Ibys Maceioh ( violão). Arquivo: Marcos de Farias Costa

 

Luizinho Sete Cordas – como ele gosta de ser chamado, hipocorístico autoevidente, pelo uso que faz do violão gordo – é um indivíduo talentoso e cheio de surpresas. Ledor voraz de literatura policial, boêmio escrupuloso que não tolera barulho quando executa as obras primas do cancioneiro popular, conhecedor da boa música clássica e do jazz, (além do samba e do choro, prata da casa), também costuma fazer uns traços e troças, caricaturas e bico de pena, pois é um desenhista de costumes, e de mão cheia.

Só para quem não sabe o bico de pena (os franceses fazem biquinho e grafam dessin à plume) é uma técnica de desenho utilizando pena e nanquim, criando assim uma imagem linear que depois é preenchida com aplicação do próprio nanquim diluído. Músico por vocação e funcionário da Caixa Econômica Federal por profissão, sabe harmonizar trabalho e boemia, sem prejuízo nas duas atividades.

Volta e meia Luizinho (cujo nome civil completo é Luiz Carlos Vieira de Lima) aparece nos bares – que, felizmente, eu também costumo frequentar – sempre dando uma “canja”, com miríades de músicas na memória, dedilhando ao sabor das concatenações dos acordes e das ondas sonoras, pinho em punho, em clima de festa. Às vezes vai visitar-me na livraria e papeamos sobre muitos temas que coexistem entre o céu e a terra, mas o nosso assunto preferido é a música popular brasileira. Numa dessas vezes, apareceu sobraçando um maço de páginas bem organizadas, repletas de desenhos e textos, tudo relacionado com o ambiente musical alagoano. Tomei um baita de susto quando ele me convidou para “apresentar” seu livro, tratando da vida boêmia alagoana da última década do século XX e o início deste em que estamos perigosamente vivendo. Folheando as páginas eu vi do que se tratava: uma viagem lírico-pictórico-etílica pelo famoso (para boêmios e seresteiros) Bar do Milton. Hoje o seu filho Fausto toma conta dos negócios, com o falecimento do progenitor, e tem sempre uma cerveja bem gelada para “ a diretoria”, como ele designa bem-humorado os seus fregueses mais diletos.

Inaugurado oficialmente a 15 de fevereiro (evoé Baco!), de 1991, com “três panelões de feijoada gratuita”, marketing genial do velho Milton, de lá pra cá, o bar permanece de portas abertas (exceto aos domingos), recebendo os fregueses de longa data ou os recentes de quatro costados.

Parágrafos atrás eu aspeei “apresentar” porque está na cara que Luizinho não precisa de apresentação de ninguém, ele é um criador de conteúdos culturais, sabe onde coloca os tons e as ideias, além das imagens que as urdem e as representam condignamente, fidedignamente, sem comprometer o real. Claro que aceitei o convite, pois tudo que concerne à nossa alagoanidade (sem o onanismo solene dos acadêmicos de plantão) me interessa e me sensibiliza.

O livro trata de um dos redutos de MPB mais interessantes de Maceió, que embora de vida curta, ainda funciona enquanto bar, porém agora sem a presença semanal dos chorões e sambistas que, antes, invadiam o recinto, sempre aos sábados, a partir do meio-dia, numa musicalidade sem fim. Fui frequentador assíduo e conheço pessoalmente o seu proprietário Fausto, tanto quanto o seu antigo dono Milton, pai do faustoso empresário atual: daí o nome “Bar do Milton”. Neste trabalho curioso Luizinho percorre um roteiro pictórico-documental, perfazendo o mapeamento dos bares de Maceió, colocando o primeiro tijolo neste tipo de construção: a galeria dos boêmios.

Íamos nós, a patota chorística, todo santo sábado, por volta das 15:00 da tarde, e o lugar já estava incendiado de gente, apinhado de artistas, instrumentistas, compositores, intérpretes e frequentadores em geral, amantes da música de boa qualidade, aficionados do choro e do bom e tradicional samba. Ocorriam tramitações noturnas: uns vinham de outros lugares e terminavam a noitada no Bar do Milton e vice-versa: alguns inconformados (ou inconformadas) com dores-de-cotovelo ou não, saiam do Milton e iam curtir uma saideira noutras sacristias. No domingo, dia oficial da ressaca brasileira, o bar não abria que ninguém é de ferro.

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Existem dos tipos de boêmios: o falso e o autêntico. A boemia autêntica manifesta-se de forma diabólica, o álcool corroendo o corpo e também a mente que se desestabiliza em variados transtornos psíquicos. Porém, o boêmio verdadeiro (e não aquele de araque e de carteirinha) é o que inflama a noite, sendo ele Noel Rosa no Rio de Janeiro ou Marcus Vinicius e Rubem Matraca aqui em Maceió. O boêmio de araque mistura uísque com complexos vitamínicos, bem administrados pelo médico da família. O boêmio seria no Brasil, segundo Oswaldo de Andrade, a verdadeira antítese do burguês e não o proletariado, de acordo com a doutrina marxista. Otto Maria Carpeaux refere-se à “falsa boêmia de artistas pobres, mas felizes na vida sem ocupações sérias e de amor livre”. E arremata: “Na realidade, a falsa boemia só existe entre artistas-diletantes ineptos, vivendo das mesadas do pai; ou então é um espetáculo arranjado por artistas malogrados e espertos para assustar e secretamente divertir o burguês que paga ingresso”. Em termos de música popular brasileira, eu diria que o samba-canção “A volta do boêmio” (composição de Adelino Moreira, gravada em 1956 por Nélson Gonçalves) é exemplo típico da boêmia tranquila, cheia de prêmios e regressos, enquanto o samba “Madrugada”, do portelense Zé Kéti (gravado pela sambista paulista Isaurinha Garcia, em 1967, selo Odeon), e dramática interpretação na voz do compositor alagoano Ibys Maceioh, seria a autêntica música que retrata a vida de um boêmio escorraçado pelo mundo atroz. Pois bem, no bar do Milton tínhamos todo tipo de boêmios, e, felizmente, mulheres agradáveis e atraentes, fossem boemias ou não, que tornavam as sessões de samba e choro mais interessantes e convidativas. Sem as mulheres o mundo seria um erro de Deus.

Ibys Maceioh

Quem acabou com as antigas sessões de choro aos sábados, no Bar do Milton, foi o surgimento de um outro reduto de MPB, arrastando os músicos (e, consequentemente, uma parcela da clientela) em direção ao novo ponto que surgira. A culpa é da eterna dinamicidade da vida, de ninguém mais. Mas os amigos leais (como é o caso de Luizinho e outros figurantes da boemia alagoana) permaneceram indo e frequentando o Bar do Milton, para tomar uma cerveja geladíssima, “da direção”, segundo o bordão categórico de seu proprietário Fausto, sempre de bom humor e brandindo um saca-rolha gigantesco, com o qual ele faz mil piruetas e malabarismos, sem jamais deixá-lo cair no chão. Bem-humorado e de bem com a vida, Fausto (que não é nada mefistofélico, mas sim mefistofáustico) sempre teve aquele atendimento especial para a sua clientela, caprichando no tira-gosto, aos cuidados da cozinheira Carmela, inclusive atendendo sugestões e solicitações dos biriteiros e, até, de frequentadores ocasionais.

Aristóteles, o pai da Razão, da Retórica e da Teoria da Literatura, afirmou, sempre acertando na mosca, que “quando se tem de representar certas personagens pela imitação, deve-se, necessariamente, pintá-las melhores ou piores do que são”. Aqui já se vislumbra a arte da caricatura, tão bem caracterizada.

Até onde vai a minha ignorância no assunto, a primeira charge brasileira foi estampada no Jornal do Comércio, no dia 14 de dezembro de 1837, apenas dois anos após Maceió ser elevada à categoria de capital das Alagoas; mas eu não saberia afirmar com exatidão qual foi o primeiro bico de pena publicado na imprensa alagoana, portanto ficarei (por enquanto) de bico calado, deixando esta preciosa contribuição aos eméritos pesquisadores e historiadores alagoanos, ufalescos ou não, que por certo se refestelarão com tal descoberta. Está tudo por se fazer em Alagoas, da moralidade com o dinheiro público à criatividade com o capital privado.

O livro texto-imagem de Luizinho (ainda inédito) trata justamente disto: revisita a vida boêmio-etílico-musical do Bar do Milton em sua época de ouro, do finalzinho dos anos 90 aos inícios do século XXI. Com mão de mestre e traços resolutos Luizinho retrata as figuras e personagens, além de músicos e intérpretes. Com tinta fina recria as estampas da época, reproduzindo meticulosamente o universo daquele pequeno e saudoso bar de Jatiúca, antes com música ao vivo, onde pontificavam os sambistas & chorões. Uma imagem vale por mil palavras, dizem alguns idólatras da representação visual e somos obrigados a concordar em número e letra. De fato, temos neste livro, onde coabitam textos e traços, um retrato vivo de um ponto boêmio que, infelizmente, não desapareceu, ao menos como bar, embora atualmente sem música ao vivo. Não houve uma despedida melancólica.

Este livro é uma tentativa artística de manter na memória, com pormenorização icônica, os melhores e maiores momentos de uma boêmia que deixou a sua marca. Qualquer tempo passado foi melhor, disse um poeta espanhol.

Luiz Carlos Vieira de Lima nasceu no bairro do Poço, em Maceió, no dia 4 de janeiro de 1950, vindo a falecer no Hospital Arthur Ramos, a 7 de janeiro de 2020, informa-me a sua filha Laryssa, com saudades na voz. A infausta notícia pegou-me de surpresa meses atrás. E o livro, creio eu, provavelmente permanecerá inédito e inaudito.

Quanto a estas mal traçadas laudas, que parecem tresandar a sentimentalismo nostálgico ou saudosismo passadista, aspiram apenas ser companheiras de viagem do olho lúdico e lúcido de Luizinho Sete Cordas, excelente violonista que também sabia desenhar com a íris gulosa, fixando o tempo bom que se foi no tempo ainda em que vivemos. A saudade mata a gente. A saudade é dor pungente. Mas quem vive de saudade é museu, afirma o povo em sua paquidérmica sabedoria.

O que resta a dizer fica pelo não dito, ou desdito, jamais desditas, pois destas eu fujo como o diabo da cruz. Digamos que a arte de Luizinho Sete Cordas como caricaturista reflete a sua destreza técnica de violonista, respeitado entre seus pares.
Os meus sensíveis tímpanos agradecem.

__________

(*) Compositor, comentarista musical e cantor.

 

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1 Comentário

  • Ha ha outro que tenha tanto compromisso com a nossa pregressa história Boêmica como Marcos Farias, daí ser um guardião de memorias e nos exaurir de conteúdos. Bravo!

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