domingo 28 de abril de 2024

Os xenófobos que ofendem nordestinos têm uma estranha obsessão pelo calango

Associar nordestinos a pessoas famintas ainda é prática corrente nas redes, e representar a região como sofrida (alô, Globo!) só mantém o preconceito. Fabiana Moraes Fabiana Moraes
Em boa parte do imaginário nacional – retroalimentado pelas caras sofridas dos personagens nordestinos que emissoras como a Globo criam –, a cesta básica nordestina é composta por farinha, rapadura, cuscuz e calango. Ilustração: Nicholas Steinmetz para o Intercept Brasil

Por Fabiana Moraes, do Intercept Brasil

ESTAVA acompanhando as críticas sobre “No Rancho Fundo”, a próxima novela da Globo (confesso que com certa preguiça, já que o estoque de Dove Barro da emissora nos elencos “nordestinos” parece não ter fim). Entre um link e outro, me deparei com uma ofensa xenofóbica na conta do presidente do país no X, o ex-Twitter.

Fui atrás do poeta acima e li postagens racistas e xenófobas de várias outras pessoas que seguiam a mesma linha: “Analfabeto, dislexo, corinthiano e comedor de calango, definitivamente vc é um dos presidentes da história do Brasil”; “aprende a falar primeiro, comedor de palma e calango”; “Calma aí comedor de calango, ladrão de farinha”.

O termo me remeteu a um episódio de discriminação que ficou conhecido no fim de 2022, quando Lula venceu o primeiro turno das eleições. Em um áudio de uma conversa entre uma servidora do Ministério Público de Goiás, uma técnica de enfermagem e uma funcionária de loja de construção, ouvíamos:

Esses comedor [sic.] de calango tinham que voltar para lá. Se eles gostam de calango, volta para lá. Vem atrapalhar a gente. Tem que mandar explodir aquela bosta, aquela parte do Nordeste lá. Povo vagabundo, quer ficar vivendo de bolsa família de R$ 60“.

As três moravam em Cachoeira Alta, em Goiás, e foram indiciadas por racismo. No mesmo ano, a dona de um bar em Copacabana, bairro do Rio de Janeiro, foi agredida física e verbalmente por uma pessoa que a chamava de “paraíba marrenta, comedora de farinha“.

Percebi que em boa parte do imaginário nacional – retroalimentado pelas caras sofridas dos personagens nordestinos que emissoras como a Globo criam –, a cesta básica nordestina é composta por farinha, rapadura, cuscuz e dois quilos de calango.

Chega a ser engraçado (eu não sei vocês, mas eu fico com muita vergonha alheia) ver como empresas com tanto dinheiro pararam no tempo e insistem em publicizar uma história única e manjada sobre uma região heterogênea.

O problema é como isso é assimilado e devolvido: muitas vezes, em forma de pura violência, vide os comentários que, desculpem, eu reproduzi acima.

Fiquei alisando minha peixeira enquanto estacionava meu jegue na garagem e pensava nesse tesão louco que os xenófobos têm pelos calangos.

À parte toda a triste truculência do momento atual, a obsessão faz algum sentido. São décadas e décadas com o bichinho ligeiro e rebolativo colado nas telas e, consequentemente, em nossas retinas.

Lembrei, além das novelas, de algumas capas de revistas e jornais que seguem a mesma cartilha da repetição e se empenharam em mostrar o Nordeste mirradinho e pedindo socorro. Afinal, uma foto com uma pessoa faminta segurando um lagarto miúdo rende mais atenção do que um nordestino de barriga cheia, conferem?

Escrevi algumas vezes ao longo dos anos sobre esse tema e separei essas capas históricas aqui:

   

A capa do JB com Chico Marcolino, de 1983 é bem conhecida e já foi publicada por esse Intercept Brasil. A da Veja também é famosa e saiu em 1988. Ambas cobriam a terrível situação de fome causada pela seca principalmente nos sertões. Não mentem, nem poderiam.

A seca é um fenômeno natural no semiárido, mas a falta de comida, não. É por isso que questões como o acesso à água, programas de redistribuição de renda e incentivo à agricultura familiar são tão importantes, mas os xenófobos não vão querer ter essa conversa.

Afinal, melhor que política pública, vale mandar uma cesta de Natal para o sertão uma vez ao ano e então se sentir santo e em paz com Jesus.

A questão é que nossas telas e retinas aprenderam a ver a fome, mas não foram apresentadas a um bioma – a caatinga – que abriga 178 espécies de mamíferos, 591 de aves, 177 de répteis, 79 espécies de anfíbios, 241 de peixes e 221 abelhas.

A questão ainda é que a gente mora em um país classista pra burro, e a alimentação relacionada à pobreza vai ser vista geralmente como vergonhosa – ou “exótica”, caso caia no gosto de algum chef estrelado.

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Nesse sentido, caçar lebre e javali nas florestas europeias pode até ser chique, mas caçar cotias no Nordeste? Nem pensar. Coisa de “gente esfomeada”.

É importante lembrar que a caça de animais é regulada por órgãos de fiscalização como o Ibama, que a permite só em casos excepcionais, para controle de fauna invasora.

Mas voltemos: se os calangos nos remetem às situações terríveis e desumanizantes de vulnerabilidade e a atos de pura sobrevivência, o fato é que há até hoje também uma cultura alimentar em todo o país da qual fazem parte tejus, preás, cobras-d’água, cotias, tanajuras.

Muitas delas, como no caso das formigonas gorduchas que eu mesma coletava quando criança, nos dias de chuva, vêm de culturas como as indígenas.

Conversei sobre o assunto com a pesquisadora Rozélia Bezerra, professora aposentada da Universidade Federal Rural de Pernambuco, a UFRPE, onde ministrou o curso História da Alimentação. A professora, que passou por insegurança alimentar quando criança, no agreste de Pernambuco, lembra que não é possível separar essas práticas de uma necessidade que, com o tempo, se tornam parte das comunidades e que, inclusive, podem desaparecer.

“Animais como tejus e cobras são muito comuns como alimentos, mas é preciso conhecimento para lidar com estes animais, saber a técnica de coletar, de abater, fazer o corte. Quando eu era criança, comíamos preás assados na brasa, no espeto feito de alecrim do mato. Não sei se hoje teria coragem, mas era a proteína disponível. Lembro que meu pai ganhou um tatu peba e o cevou… no Maranhão, vi as pessoas se alimentando das larvas que ficam no interior do coco babaçu“, contou, se referindo ao conhecido bicho-do-coco .

Quando ouvi Rozélia, lembrei de uma viagem, há cerca de 10 anos, até a Chapada Diamantina, sertão da Bahia. Após visitar um dos poços (o Azul ou o Encantado), fui comer em um self-service local e, para minha surpresa, estava lá um refogado de palma forrageira, um cacto muito presente na cultura alimentar da região. Provei e era saboroso.

Eu, que cresci na capital vendo apenas notícias tristes sobre sertanejas e sertanejos que precisavam comer o cacto usado para alimentar animais, fiquei espantada: o que eu via somente como sofrimento também era cultura alimentar.

Por isso é sempre importante lembrar: mídia é pedagogia, e através dela podemos aprender um bocado – e a desaprender também.

Foto: Cássio Moreira/Codevasf

Fui buscar mais informações sobre a palma forrageira e achei boas notícias em diversos trabalhos. Um deles é de autoria de Cleonice dos Santos Nunes, da Universidade Estadual Vale do Acaraú.

Ela destaca a versatilidade do cacto em usos que vão para bem além da alimentação animal e humana, destacando seu uso “como fonte de energia, na medicina, na indústria de cosméticos, na proteção e conservação do solo, corantes, mucilagem, ornamentação”.

Já Bento Andrade, do Instituto Federal da Paraíba (Campus Princesa Isabel) analisa na pesquisa “Alimentação humana: aporte nutricional da palma forrageira” a produção bibliográfica dos últimos cinco anos sobre o vegetal e destaca a boa capacidade energética e de nutrientes da planta, que pode ser usada em sucos, sobremesas, refogados, etc.

Se o cacto é sempre associado à seca e à vida dura, é hora também de trazê-lo como alimento precioso – e como símbolo de autonomia.

Sim, você já viu essa novela

Antes de acabar, meus dois centavos sobre “No Rancho Fundo”, a novela patrocinada pelo Dove Barro inesgotável da Globo: a trama versa sobre uma “líder da família do interior que precisa lidar com o choque entre o lugar onde vivem e a cidade”, como diz o texto da própria emissora.

Como se o que chamam de interior fosse um local afastado do tempo e dos processos de modernidade, sendo eternamente contrastante com a capital. Vão dar um rolê em Caruaru às 18h, talvez ficar no engarrafamento no centro da cidade ajude um pouco a tensionar esse clichê.

Mais: o folhetim ainda não estreou, mas tenho certeza de que nós já vimos essa novela. Fiz um brevíssimo exercício empírico, só a título de ilustração, e coloquei as palavras “Globo”, “novela” e “Nordeste” no Google Imagens. Apareceu a tela aí abaixo:

Cavalos, moças morenas brabas ou brejeiras e de longos cabelos, homens barbados de chapéu, luz laranja, chão ou mato seco, ambientes rurais: parecem cenas de um mesmo trabalho, mas não são.

Estão aí quatro “diferentes” produções da emissora: “Cordel Encantado”, de 2011; “Velho Chico”, de 2016; “Mar do Sertão”, de 2022; e a já citada “No Rancho Fundo”, uma espécie de “segunda parte” da novela anterior.

No perfil da emissora no ex-Twitter, o X, havia muita crítica em meio a alguns elogios. Pesquei uma delas aqui (reproduzida sem interferência):

“Todos nós como nordestinos pobres sem escolaridade na seca e sem comida sobrevivendo do bolsa família e auxílio emergencial .

Pois é. A conversa rendeu excelentes pontos na própria postagem da emissora, mostrando – e essa é a boa notícia – que esse tipo de camisa de força já não cola mais.

Em tempo e reiterando: xenofobia é crime.

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