terça-feira 7 de maio de 2024

Inventando a roda

O apagamento do coco de roda como gênero musical, segundo Canário, se deu ainda em meados do século XX, quando a indústria fonográfica brasileira teria tomado a decisão de exportar o samba como o genuíno gênero musical nacional

23 de abril de 2024 8:46 por Da Redação

Foto: Wladymir Lima

Por Wladymir Lima

A roda de coco é uma iniciativa do Coletivo Roda de Coco e teve início em fevereiro de 2023, na praça Freitas Cavalcanti, na Ponta Verde. Ela ocorre semanalmente às segundas-feiras em frente ao trailer Suco de Cana, reúne músicos, artistas visuais, professores universitários, atores, pesquisadores e já conta com um grupo de frequentadores fiéis – moradores da região.

O idealizador da roda, o multiartista Rogério Dyaz, fundador da banda Poesia Musicada no Pandeiro convidou Fagner Dübrown para fundar a roda de coco, Fagner aderiu ao projeto e os dois convidaram Gabriela Cravicanela, e Marvin Silva (Rogério, Marvin e Fagner São integrantes da Poesia Musicada no Pandeiro) Segundo RogérioDyaz, a Roda de Coco uma iniciativa inédita. Primeiramente, pelo formato – que é similar ao das já bem conhecidas rodas de samba.

A escolha do formato não se trata, porém, de imitação, mas de provocação. Assim como o próprio conceito de roda de coco. Dyaz e Tainan Canário, outro integrante do coletivo – este, professor e pesquisador independente da cultura popular – defendem a ideia de ser o coco de roda um gênero musical autenticamente brasileiro, do qual teriam derivado todos os outros gêneros conhecidos e explorados pelo mercado: do forró, passando pelo baião, entrando pelo afoxé, ijexá e desaguando no axé, pagode, samba, etc.

O apagamento do coco de roda como gênero musical, segundo Canário, se deu ainda em meados do século XX, quando a indústria fonográfica brasileira teria tomado a decisão de exportar o samba como o genuíno gênero musical nacional. Daí que artistas até hoje muito conhecidos, como o falecido sambista Bezerra da Silva, tiveram que mudar a forma como se apresentavam para – no eixo Rio-São Paulo – poderem sobreviver.

Foto: Wladymir Lima

Segundo os membros do coletivo Roda de Coco, naquela época os próprios artistas tinhas consciência da manipulação comercial em que o gênero coco estava sendo envolvido e deixavam seu protesto em forma de arte, como na letra de A ordem é samba, do paraibano Jackson do Pandeiro: “É samba que eles querem, Eu tenho. É samba que eles querem Lá vai É samba que eles querem, Eu canto. É samba que eles querem E nada mais”.

Nada disso, porém, se deu por interesses meramente mercadológicos. Há, segundo os integrantes do coletivo, um claro viés político envolvendo essa decisão. E esse viés encontra suas motivações na origem deste gênero musical: a classe pobre trabalhadora rural. Segundo pesquisas, a origem histórica do coco de roda remonta aos quilombos. Trata-se, portanto, de um gênero que nasce literalmente das mãos de brasileiras e brasileiros pobres e segregados – cuja expressão artística já era, por si, um grito de revolta em forma de arte, diante da estrutura opressora que a sociedade agrária brasileira (a Casa Grande) impunha.

Essa marca de discriminação, segundo o coletivo, permanece de uma forma ainda mais perversa nos dias atuais, com a folclorização da cultura popular. Segundo eles, transformar os mestres de cultura popular em atrações folclóricas é condená-los à indigência artística. Folclore, nesse sentido, é a cristalização, a estagnação de um fazer artístico menor (artesanal no sentido pejorativo), parado no tempo. A roda de coco é, portanto, um espaço de construção e debate político.

Todas as segundas-feiras, o coletivo se reúne, traz convidados – debate temas relacionados à cultura popular e à participação da sociedade no debate público da cultura. A música, nesse caso, é um vetor para a construção da cidadania e da participação política. Cultura não vista apenas como espetáculo, mas num acepção mais ampla. Nas palavras de Rogério Dyaz, cultura é rua pavimentada, é saneamento básico, é quadra de esporte, é segurança nas ruas dos bairros de periferia, e criança estudando.
A escolha do local para a roda (que também se reúne esporadicamente de forma itinerante em outros locais) não foi inadvertida. Surgiu, primeiramente, de uma possibilidade. O trailer do Suco de Cana, tocado pelo fundador Rogério Dyaz, localizado na praça em frente ao Bom Preço da Ponta Verde (a cerca de 200 metros do mar), mas, principalmente, de uma constatação: Maceió promove um apartheid cultural – e isso é um dos aspectos da folclorização contra o qual o coletivo se insurge.

Toda a manifestação artística periférica é segregada nas periferias, nas comunidades empobrecidas, seja na parte alta ou na parte baixa de Maceió. Como Dyaz faz questão de salientar, “ o coco de roda sempre esteve na quebrada, o que faltava era uma roda de coco aqui, na área nobre de Maceió”. A própria topologia da roda de coco é, portanto, um gesto político! Mais uma vez, a arte pedindo passagem e respeito aos fazedores de música da cidade.

Como espaço de encontro, a roda de coco também faz questão de estar em permanente renovação. Todos que participam, seja como músico, convidados de outras artes e áreas, são incentivados a se manifestar – ora pedindo um coco conhecido, ou mesmo apresentando poemas, textos, raps ou qualquer outra forma de manifestação artística. É um movimento, de fato, sem uma forma rígida, a não ser a formação que provoca (ironiza) as rodas de samba sem, no entanto, fazer uma crítica direta a elas. A crítica é dirigida ao pensamento elitista cuja estratégia é sempre empobrecer o debate sociocultural, em prol das táticas instagramáveis de cultura.

Ou seja, uma abordagem de negligencia proposital com os artistas locais, de forma a manter a população sem acesso ao que se produz de forma crítica na arte alagoana. A roda de coco, segundo seus fundadores, trata justamente de promover um debate sobre a identidade alagoana, para além de estereótipos, clichês e folclorização. Ao contrário, acreditam – e tem como provar – que o coco é, e continua sendo – o gênero mor da cultura musical brasileira. Tainã Canário tem em seu bordão “o coco é pai do samba e eu posso provar” outra provocação, sem medo de tocar “calcanhares de aquiles” do stabilishment cultural brasileiro.

Foto: Wladymir Lima

O que a própria roda revela – e isso eu mesmo pude constatar – é a efervescência da expressão do coco de roda na cidade de Maceió. Muitas bandas que se assumem como gênero musical em vez de grupos de folguedo. É gente jovem, de origens étnicas diversas, como a própria fundadora da Roda, Gabi Cravicanela, ou as integrantes da recém-formada A Masseira, ou as meninas ( porque são realmente jovens, entre 20 e 25 anos) do Coco de Ibiúna – que, através da música, do gênero coco de roda, investigam suas ancestralidades africana e indígena.

Apenas para citar duas das bandas mais jovens que já figuraram em uma das rodas, e que trazem uma constatação: as mulheres são protagonistas nesse processo de emergência do coco em Alagoas. Mas também poderiam ser citadas A Comunidade Azul, um coletivo já bem estabelecido na cena do coco local, e também as variantes do coco de roda (conhecido como coco estilizado, pelo fato de participarem de competições, investirem em ornamentos etc, embora os próprios integrantes dessa vertente rejeitem esse título – mas já figuraram entre convidados da roda: Igbonan Rocha, Marcos Topety ( também coquista, e idealizador do Coco de Quinta, no Barzarte, no bairro do Jaraguá).

Fagner Dubrown, por exemplo, é músico da banda de Zeza do Coco – patrimônio imaterial de Alagoas. Juntamente com Rogério Dyaz, formou a primeira dupla (no início da Poesia Musicada no Pandeiro, 15 anos atrás) a trazer o coco de roda para os bares e casas de show em Maceió. E, segundo eles mesmos comentam, sem nem sequer ter noção de que o que faziam era coco. A partir do momento em que um dos espectadores comentou que o que eles faziam era coco de roda, os artistas começaram a pesquisar e se depararam logo de cara com a obra da Jacinto Silva, do qual se tornaram admiradores.

O reconhecimento veio através do anos e, neste São João em Caruaru, foram convidados para integrar um line up com artistas de todo nordeste para homenagear o falecido coquista alagoano na chamada capital do forró. Enquanto isso, aqui, a prefeitura de Maceió simplesmente cancelou as apresentações do Polo de Coco, que havia sido criado justamente por conta da organização política do coletivo. Depois da péssima repercussão, e de protestos, foram novamente realocados para compor a programação para os festejos juninos no Jaraguá – mas, sem divulgação, as apresentações foram esvaziadas de público.

Foto: Wladymir Lima

Nem por isso a turma esmoreceu. Pelo contrário. Com a plena consciência da necessidade da vivência da cultura como um processo político, e de insurgência (até mais do que resistência, pois de nada adianta apenas resistir sem propor alternativas) contra a hegemonia do poder econômico segregador de Alagoas, o coletivo já deu os primeiros passos para uma nova ação político-artística-cultural: a criação do Bloco da Galinha Preta, que consiste na união de vários grupos periféricos da capital, que produzem seus blocos carnavalescos isoladamente, para marcharem em pleno carnaval na zona nobre de Maceió – conhecida justamente por não ter carnaval, mas apenas prévias.

Segundo Dyaz, criar uma prévia do que não existe é algo absolutamente surreal e cínico. O antropólogo Edson Bezerra – também frequentador da roda – aduz que isso, na verdade, se trata de um estratégia da elite político-econômica para ao mesmo tempo invisibilizar as culturas negras que compõem as manifestações carnavalescas e atender ao trade turístico, ávido em lucrar com a imagem da cidade fuga da agitação carnavalesca. O bloco da Galinha Preta – que começa a se articular – promete ser, então, desde já, o maior bloco carnavalesco de Maceió.

É um processo que está em movimento e cujo caráter irreverente e anárquico também cria conflitos internos, diante da diversidade de ideias e abordagens para cada uma das situações vividas e apreendidas pela roda. É toda essa dinâmica, sem uma visada mercadológica encaixada nos padrões, mas, ao contrário, uma abordagem de uma construção coletiva e colaborativa que tornam este movimento algo inédito em Alagoas. Ainda germinal, mas já capaz de reunir pessoas dos mais diversos ramos de expressão cultural (notadamente os interessados nas culturas subalternas, periféricas, invisíveis para o mercado cultural).

Um processo que ao mesmo tempo já está sendo registrado, e acompanhado de perto, para um futuro documentário. Afinal, uma queixa constante dos integrantes de coco de roda e outras manifestações culturais que passam pela roda é o fato de que falta registro audiovisual para suas iniciativas, o que prejudica tanto a continuidade dos projetos, como a formação de uma memória. E tudo isso, sem mais do que a colaboração de alguns parceiros, e o trabalho voluntário de demais artistas e músicos.

Foto: Wladymir Lima

Quando se chega numa roda, impossível não notar o caráter abrangente das ambições do coletivo – podendo soar até como excessivamente pretensiosas. No entanto, um olhar mais demorado vai perceber que a grande pretensão é algo, na verdade, de uma singeleza ímpar. Num momento em que o massacre da indústria cultural torna tudo excessivamente pasteurizado, plastificado, mitificado, o coletivo nega a folclorização – mesmo sabendo que se trata de um tema espinhoso, e sem consenso mesmo dentro do grupo – pois percebe que o que estão fazendo, registrando é algo vivo.

Tainã Canário e Rogério Dyaz até ironizam: “folclore é Rolling Stones, que tão fazendo a mesma coisa há 50 anos. Aqui é coco, aqui é música, a genuína música popular brasileira”. Os fatos, como a já citada proliferação de bandas de coco em Maceió – a maioria integrada por mulheres – enrobustecem a tese. E mais, quem pensa que a roda de coco é igualzinha à maioria das rodas de samba, em que se executam os clássicos já bem conhecidos, de músicos do gênero, vai perceber que a proposta é outra.

Mesmo reverenciando mestres e mestras desse gênero, como Verdelinho, Hilda, e os coquistas clássicos, como Jacinto Silva, o mote principal da roda é trazer as composições dos próprios coquistas da atual geração. E nesse aspecto, o incentivo é não só para os jovens, mas para também os que começaram a tocar e compor por conta da roda, como o casal Joel Raphael e Maria. Ambos, já na casa dos 60 anos.

Sempre que questionado se a roda é um resgate do coco, Rogério Dyaz é enfático: não! Nós é que estamos sendo resgatados pelo coco. É o coco que está nos fazendo pisar no chão, sentir a terra, nos apossar de nossa ancestralidade, nossa cultura, nossa história e nosso poder. Não somos nós que estamos resgatando o coco. É o coco que está nos resgatando dessa modernidade vazia!

Pisa!

Mais lidas

CPI da Braskem tem 35 dias para concluir investigação, que inclui visita aos bairros destruídos

23 de abril de 2024 8:46 por Da Redação Com o objetivo de investigar

Sem declarar IR cidadão não pode sequer receber prêmio de loteria que, acumulada, hoje sorteia

23 de abril de 2024 8:46 por Da Redação O prazo para entrega da

Risco de morte após a febre chikungunya continua por até 84 dias, diz Fiocruz

23 de abril de 2024 8:46 por Da Redação Em meio à epidemia de dengue

Saúde volta a alertar alagoanos sobre medidas de prevenção contra a dengue

23 de abril de 2024 8:46 por Da Redação A Secretaria de Estado de

PF indicia filho de Bolsonaro por falsidade ideológica e lavagem de dinheiro

23 de abril de 2024 8:46 por Da Redação A Polícia Federal em Brasília

FAEC anuncia calendário anual de eventos esportivos para o público escolar

23 de abril de 2024 8:46 por Da Redação A Federação Alagoana de Esportes

Bar do Doquinha: o lar enluarado da boemia

23 de abril de 2024 8:46 por Da Redação Por Stanley de Carvalho* Há

Seduc anuncia processo seletivo para a Educação Especial

23 de abril de 2024 8:46 por Da Redação A Secretaria de Estado da

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *