27 de abril de 2024 7:17 por Da Redação
No Brasil, o tratamento do porte de drogas para uso pessoal revela uma característica especial, isso porque nosso país classifica as infrações penais, que são condutas proibidas, ilícitas e culpáveis a ser punidas, em duas, (i) crimes e (ii) contravenções penais.
O critério que os diferencia encontra-se na “Lei de Introdução ao Código Penal”, o Decreto n. 3.914/41. Em seu art. 1º, ele estabelece que crime é a “infração penal que lei pune com pena de reclusão ou detenção, ou com multa, isoladamente, alternativamente ou cumulativamente”, enquanto que contravenção penal é a “infração penal que lei pune com pena de prisão simples, aquela que dura de 15 dias a 3 meses, ou com multa, cumulativa ou isoladamente”.
Assim, o Brasil adotou um critério bipartido, em que de um lado há crimes, de outro há contravenções penais. No entanto, o porte de drogas para uso pessoal não é punido nem com prisão simples, nem com pena de reclusão ou detenção, o que inspira debates acerca de sua natureza jurídica.
O art. 28º da Lei n. 11.343 (Lei de Drogas) pune aquele que adquire, guarda, tem em deposito, transporte ou traz consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal, apenas com (i) advertência sobre os efeitos da droga, (ii) prestação de serviços à comunidade e, por fim, (iii) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Nesse contexto, é perceptível que se escolheu despenalizar o usuário de drogas, diferentemente do tráfico. Apesar disso, a despenalização não implica em descriminalização. Em outras palavras, o porte de drogas para uso pessoal é crime despenalizado, conforme já decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça (RE n. 430.105/RJ e REsp 1.672.654).
A justificativa de sua criminalização parcial, já que não se pune o uso pessoal, é a tutela da saúde pública, pois a posse de tóxico põe-na em risco, assim representando um perigo social à coletividade, que é sua vítima. Nesse contexto, muitos passam a argumentar que a repressão ao uso pessoal de drogas não se mostra viável, haja vista que o Direito Penal somente deve se ocupar de condutas que lesem à integridade social ou aos bens jurídicos essenciais, fato que não se revela na criminalização do porte para uso pessoal.
Nesse interim, ainda surge outro debate importante acerca do art. 33 da mesma lei, pois não há um critério objetivo que diferencie porte para uso pessoal de tráfico de drogas. O que há, na legislação, é uma disposição extremamente subjetiva a qual prevê que o juiz os diferencie com base em (i) natureza e quantidade da substância apreendida, (ii) local e condições em que se desenvolveu a ação, (iii) circunstâncias sociais e pessoais do acusado, (iv) conduta e antecedentes do agente. Tais critérios se revelam extremamente nocivos em um país marcado pela estigmatização das populações periféricas, diferenciando pessoas com base em bairro, classe social, aparência, nível de escolaridade, entre outros critérios marcadamente subjetivos.
Assim, em razão de tais fatos, chegou ao Supremo Tribunal Federal, órgão responsável por interpretar e guardar a Constituição, em 2012, um processo que debatia se o art. 28 seria constitucional, em razão de possíveis violações ao art., 5º, inciso X, da Constituição, bem como foi pedido a fixação de uma quantidade mínima para diferenciar porte para uso pessoal de tráfico.
Art. 5º, X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
A Constituição Brasileira definiu a igualdade, a liberdade, a intimidade, a vida privada e saúde como direitos fundamentais, ou seja, eles constituem um núcleo de direitos considerados essenciais para coletividade, os quais não admitem violações. O direito a igualdade, em sua concepção formal, consiste na ideia de que todos os homens são iguais, não importando as condições ou circunstancias de cada indivíduo.
Assim, os indivíduos, que se encontrem em situações equivalentes, devem ser tratados igualmente. Nesse contexto, não se mostra cabível a diferenciação entre o uso pessoal e o tráfico em critérios inteiramente subjetivos para situações equivalentes, pois a diferenciação entre eles somente se justifica por meio de critérios objetivos, proporcionais e razoáveis.
Por sua vez, o direito à liberdade surge como a possibilidade do sujeito orientar seu próprio querer e agir sem ser impedido ou ser obrigado por outros. Nesse sentido, o direito à liberdade garante aos indivíduos a faculdade de conduzir livremente, sem constrangimentos ou impedimentos, suas ações, respeitados os direitos alheios.
O direito à intimidade e a vida privada garantem que os sujeitos possam conduzir sua vida da maneira que julgar mais conveniente, sem intromissão da curiosidade alheia. Finalmente, o direito à saúde consiste em um dever do Estado e um direito de todos, garantindo ao indivíduo o direito ao acesso às ações de saúde. Por outro lado, o direito à saúde não se finaliza na necessidade de uma prestação positiva por parte do Estado, mas, igualmente, o obriga a se abster de atuar de modo a prejudicar a saúde dos indivíduos, ou seja, a dimensão negativa do direito à saúde.
Logo, é perceptível que atribuir a um juiz o poder de julgar pessoas por critérios inteiramente subjetivos, em situações equivalentes, constitui violação à Constituição. Nesse contexto de violações, o Supremo Tribunal Federal tendeu a julgar inconstitucional o art. 28 da Lei de drogas, razão que acendeu o lado reacionário do Congresso Nacional.
Encabeçada por Rodrigo Pacheco, do PSD/MG, como reação aos debates no Supremo, a proposta de emenda à constituição (PEC) n. 45 busca acrescer ao art. 5º da Constituição o inciso LXXX, que estabelece o seguinte “a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
A justificativa para tal alteração constitucional é que a saúde é direito de todos e dever do Estado, de forma que a dupla criminalização do tráfico e do porte para uso pessoal prevenirá a saúde dos brasileiros, bem como extinguirá o tráfico.
O motivo desta dupla criminalização é que não há tráfico de drogas se não há interessado em adquiri-las. Com efeito, o traficante de drogas aufere renda – e a utiliza para adquirir armamento e ampliar seu poder dentro de seu território – somente por meio da comercialização do produto, ou seja, por meio da venda a um usuário final. (Pacheco, 2023, p. 3)
Tal justificativa equivale a dizer que “não haverá corrupção se ela for proibida” ou que “não haverá corrupção, se for proibido concorrer a mandato eletivo”, é uma conclusão, no mínimo, burra. No entanto, direitos fundamentais não são absolutos, eles podem ser relativizados, desde que respeitados os limites constitucionais.
A Constituição brasileira, em nenhum momento, menciona a necessidade de criminalização, delimitando explicitamente que a conduta a ser criminalizada é o tráfico, e não o consumo pessoal, não havendo justificativa constitucional para a criminalização total do uso de drogas. Dessa forma, não se mostra cabível tal intervenção no âmbito particular dos indivíduos, pois a estes são garantidos os direitos à liberdade, à intimidade e à vida privada.
Quando se almeja restringir um direito fundamental, é necessário observar ao princípio da proporcionalidade, que estabelece que a restrição deve ser adequada, necessária, proporcional e que consiga, a partir das medidas adotadas, fomentar os objetivos almejados, garantindo a prevalência de suas vantagens. Além disso, a restrição deve respeitar o núcleo essencial dos direitos que, eventualmente, irão atingir, da mesma maneira que só se justifica quando inexistente meio alternativo menos invasivo e eficaz. Não se mostra adequado criminalizar uma questão de saúde pública, nem se mostra o único meio possível, pois esta pode ser trabalhada a partir de políticas públicas de prevenção.
Ainda nesse debate, a limitação a um direito fundamental não se pode pautar nos interesses de um grupo social exclusivo, ela deve verificar os benefícios da medida, suas custas e respeitar ao princípio democrático, não sendo justo que prevaleçam os ideais de um grupo exclusivo de pessoas. Consequentemente, e como definiu o direito alemão, proíbem-se intervenções excessivas (ubermassverbot) na vida particular, que vão além do necessário e adequado, bem como se proíbe proteções deficientes (untermassverbot), que não garantam proteções adequadas e suficientes, como no caso a proteção à saúde pública.
O Senado Federal, ao propor a total criminalização de qualquer quantidade e tipo de droga, invade o espaço individual dos sujeitos, gerando uma intervenção excessiva que viola a proporcionalidade, a razoabilidade, adequação, bem como não encontra respaldo em nenhuma justificativa constitucional, assim, violando os direitos à saúde, à intimidade, à vida privada e à liberdade.
Assim, a política criminal invade uma questão de saúde pública, que deveria ser abordada sob tal forma. Uma das dimensões do direito à saúde é a negativa, que impõe ao Estado o dever de se abster de atuar de forma a prejudicar à saúde e o acesso à saúde de seus cidadãos. A proposta da PEC. n. 45/2023 revela uma violação ao direito à saúde por inviabilizar o tratamento de dependentes, criminaliza-los e, ao mesmo tempo, se mostrar inviável para atingir os objetivos que almeja.
Mesmo que ao Congresso Nacional caiba legislar sobre direito penal, este não deve se ocupar de condutas irrelevantes, que não causem efetivos prejuízos a bens jurídicos essenciais de outras pessoas. Além disso, o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas estabelece que as políticas públicas devem ser baseadas em participação popular, em provas cientificas e em medidas de prevenção, as quais não se mostram presentes na total criminalização sem ressalvas.
A conclusão é que não cabe ao Legislativo invadir a vida particular nem violar as escolhas pessoais dos indivíduos, pois neste caso ele não encontra amparo constitucional. Pelo contrário, o que ocorre é uma total violação à Constituição como forma de responder ao Supremo Tribunal Federal.