sábado 18 de maio de 2024

Inventário do Patrimônio Cultural Imaterial de Maceió é mais uma ‘maquiagem’ da Braskem

Inventário Cultural se faz para o que existe ou, pelo menos, o que se pretende manter existindo. Não para bairros já demolidos
Casas abandonadas no bairro de Bebedouro, em Maceió | Jonathan Lins/Alamy

Por Neirevane Nunes*

No mês de abril, foi divulgado pelo perfil do Instagram e na imprensa o projeto IPCI Maceió – Inventário do Patrimônio Cultural Imaterial dos Bairros de Bebedouro, Mutange, Bom Parto, Farol e Pinheiro. Este inventário está sendo financiado pela Braskem para atender ao Acordo Socioambiental firmado entre a mineradora e ministérios públicos.

Só que há muitos questionamentos a serem feitos sobre esse trabalho, começando pela forma como é tratado o caso Braskem em Maceió na divulgação do projeto no seu perfil: “fenômeno geológico” e “perigo de subsidência”. Ora, o projeto utiliza a mesmo discurso da Diagonal e Tetra Tech que também realizaram trabalhos para a Braskem.

Nós sabemos que se trata, na verdade, do maior crime socioambiental do mundo em área urbana provocada pela extração de sal-gema pela Braskem de forma irresponsável, não foi algo que surgiu naturalmente, portanto, nunca foi “fenômeno geológico”. Sobre o “perigo de subsidência” – já é fato o processo de afundamento do solo dos bairros, portanto não pode ser tratado simplesmente como um risco.

O projeto está sendo realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), por meio da Fundepes – Fundação Universitária de Desenvolvimento de Extensão e Pesquisa – ao custo de 2 milhões e 300 mil reais e pode ser baixado na página pública do Portal da Transparência, informando-se o número do projeto (2000) – http://transparencia.fundepes.br/PortalTransparencia/projeto_pt#

No perfil de instagram do projeto, este valor não é explicitado e tampouco, é explicado como será utilizado. Foi feita uma chamada pública e foram selecionados 37 agentes comunitários de pesquisa para trabalharem neste projeto, cujo contrato é de até 3 meses, entre maio e julho de 2024. Segundo explicado, a remuneração mensal bruta de R$1.666,67 (mil seiscentos e sessenta e seis reais e sessenta e sete centavos), o que multiplicado pelos 3 meses do contrato totaliza 5 mil reais por agente. A remuneração dos 37 agentes selecionados totaliza 185 mil reais.

Reprodução

Mas, o que é um inventário cultural participativo?

Segundo a definição do Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em seu Manual de Educação Patrimonial: inventários participativos (2016): Página 8: “Fazendo o inventário, é possível descobrir e documentar o repertório de referências culturais que constituem o patrimônio da comunidade, do território em que ela se insere e dos grupos que fazem parte dela. Referências culturais são edificações e são paisagens naturais. São também as artes, os ofícios, as formas de expressão e os modos de fazer. São as festas e os lugares a que a memória e a vida social atribuem sentido diferenciado: são as consideradas mais belas, são as mais lembradas, as mais queridas. São fatos, atividades e objetos que mobilizam a gente mais próxima e que reaproximam os que estão longe, para que se reviva o sentimento de participar e de pertencer a um grupo, de possuir um lugar (grifo meu). Em suma, referências são objetos, práticas e lugares apropriados pela cultura na construção de sentidos de identidade, são o que popularmente se chama de raiz de uma cultura”.

População se despede da Igreja Matriz | Instagram/MUVB

Inventário Cultural se faz para o que existe ou, pelo menos, o que se pretende manter existindo. Não para bairros já demolidos, isso porque, segundo o Iphan, não é possível dissociar “patrimônio material” (construído) de “patrimônio imaterial” (saberes, fazeres, celebrações e lugares onde aconteciam eventos importantes para o grupo) e a Unesco até utiliza a expressão “paisagem cultural” para se referir a integração entre paisagem natural, a construída, as pessoas e suas culturas: “[…] paisagem cultural traz a marca das diferentes temporalidades da relação dos grupos sociais com a natureza, aparecendo, assim, como produto de uma construção que é social e histórica e que se dá a partir de um suporte material, a natureza” (http://portal.iphan.gov.br/dicionarioPatrimonioCultural/detalhes/82/paisagem-cultural).

O bairro onde vivi por 40 anos, o bairro de BEBEDOURO, ERA TODO UMA PAISAGEM CULTURAL, segundo a definição da Unesco, e a Ladeira do Calmon pode ser uma “imagem” do que estou explicando, onde se viam as construções, as pessoas circulando, a laguna Mundaú e até Coqueiro Seco ao fundo.

Sendo assim, qual o sentido de se fazer um inventário no momento presente em que as demolições nestes bairros estão avançadas? Em que o suporte físico para que as atividades culturais se materializassem não somente estão desabitados como foram demolidos? É algo semelhante a se querer fazer um exame de sangue em um cadáver. O que vai se obter deste diagnóstico servirá efetivamente para trazer alguma vida de volta? Ou vai novamente reviver a ferida aberta da expulsão das pessoas de seus lugares escolhidos para viver?

Não se justifica mais um inventário só pra entregar ao MPF, que inclusive agiu de forma TARDIA, obrigando a Braskem fazer o inventário somente em dezembro de 2023. Quando o inventário era viável e possível, quando muitos especialistas e pesquisadores eram favoráveis que fosse feito este inventário de referências culturais urgentemente (publicado inclusive na  Revista Saber UFAL de 2021 (https://ufal.br/ufal/comunicacao/publicacoes/revistasaberufal/revistasaberufal4_rdz.pdf/view), nada foi feito. Inclusive a realização deste inventário já era uma indicação do PAS Plano de Ações Sociourbanísticas (Diagonal, Junho de 2021, página 525), mas enquanto não houve a obrigação pelo MPF, Braskem nada fez.

Entretanto, três anos depois de alertas para a urgência de um inventário, as demolições avançaram primeiro, o Mutange, o Bom Parto e até mesmo o Bebedouro, que é uma Zona Especial de Preservação 1 (Rígida) pelo Plano Diretor já não existem mais, restando apenas algumas dezenas de imóveis considerados “de valor” pelo setor de patrimônio da prefeitura, como as Unidades Especiais de Preservação (Hospital José Lopes, antigo IMA, Antiga Sinteal, Complexo Bom Conselho, Igreja Santo Antônio de Pádua, Casarão Nunes Leite entre outros listados pela Prefeitura – seleção já questionada por pesquisadores da área de patrimônio pela ausência de critérios para a escolha do que seria preservado.

Quando o perfil do projeto no Instagram diz: “convidamos a comunidade interessada a se juntar a nós nessa jornada para preservação das referências culturais de natureza imaterial locais” não esclarece à população que este é tão somente um LEVANTAMENTO de referências culturais – ou seja, o que a população CONSIDERA importante de ser preservado e não é a garantia de nenhuma ação concreta de preservação. Pelo contrário, o que se tem de concreto, até o momento, são as demolições do patrimônio material, a diáspora e dispersão dos grupos dos fazedores de patrimônio imaterial.

Por que era importante ter sido feito um inventário?

  • Para que os MORADORES apontassem quais são as REFERÊNCIAS CULTURAIS dos bairros (que não são apenas aquelas edificações mais conhecidas como a Casa de Saúde José Lopes, as casas gêmeas ou o Colégio Bom Conselho), mas o que era REFERÊNCIA para as pessoas, como Caldinho do Vieira no Pinheiro, o Instituto Joana Gajuru ou CSA do Mutange, por tudo o que significavam e proporcionavam às pessoas, bem como a Igreja Batista, que tem as festas que agregam pessoas até de outras religiões, o casarão da rua Belo Horizonte, que embora não seja tombado, era um marco referencial no Pinheiro, ou a Igreja Menino Jesus de Praga, forte referência cultural demolida sem nenhuma rachadura nem questionamento. Esses exemplos e outros lugares teriam que obrigatoriamente serem preservados, para que servissem como lugares para REATIVAR ESSAS MEMÓRIAS, ou melhor, para MANTEREM VIVAS AS MEMÓRIAS, em tempo presente, não no passado.
  • Para que as pessoas que constituem o PATRIMÔNIO VIVO FOSSEM RESSARCIDAS – os saberes imateriais das pessoas, como os brincantes de quadrilha, coco de roda, artesãos, pessoas da cadeia produtiva da pesca entre outros, teriam que receber reparação pelos danos causados pelos impactos do crime da Braskem na cultura. Os clamores dessas pessoas foram registrados nas escutas da Diagonal, ocorridas há mais de um ano. O que nunca foi colocado em questão é o RESSARCIMENTO DESSAS PESSOAS pelas perdas causadas pela dispersão dos grupos (semelhante as perdas dos comerciantes, que nem sempre conseguiram fazer nova freguesia em outros lugares), bem como impossibilidade de manutenção de saberes, como das marisqueiras e vendedoras de sururu, que relataram a situação precária e de fome que passaram a se submeter, diferentemente de quando moravam próximas à laguna e de lá tiravam seu sustento.
Prédio histórico em Bebedouro | Assessoria

Como a maioria das pessoas não sabe o que é e pra que serve um Inventário, acha que alguma coisa será feita pelo patrimônio, mas o inventário em si não garante ABSOLUTAMENTE NADA DE REPARAÇÃO, nesse caso, servirá apenas como registro para ser apresentado ao MPF como cumprimento do acordo socioambiental. E mais: executado por pesquisadores e contando com a participação das pessoas – que serão novamente importunadas em entrevistas, como aquelas realizadas pela Diagonal, sem nenhuma ação concreta, gerando mais gatilhos emocionais nas vítimas por novas pessoas contratadas pela Braskem?

Outro fato que está sendo ocultado é que entre 2015 e 2017, este inventário JÁ FOI REALIZADO por meio de um acordo de cooperação entre IPHAN/SECULT e Fundepes, conforme mostra o Portal da Transparência (projeto de número 1098). Naquela época, foi feito o Mapeamento Cultural de todo o Estado de Alagoas, conforme relatado nas páginas 44 e 102 do Livro “A identificação do patrimônio cultural pela lente das referências culturais : conquistas e obstáculos de um percurso”, publicado pelo IPHAN em 2022 de forma on line, podendo ser baixado aqui.

Os resultados INRC de Alagoas nunca foram totalmente disponibilizados publicamente – conforme prevê a metodologia do IPHAN – mas, segundo o site atual do IPHAN, está escrito que o acervo estará todo disponível on line até junho de 2024. Será que serão utilizados os mesmos dados???? Clique aqui.

Antigo Caldinho do Vieira, em Maceió | Reprodução

Cabe destacar que entre 2015 e 2018 a tragédia da subsidência não havia sido deflagrada e, durante os dois anos da realização do inventário, era fácil encontrar as pessoas em suas casas para serem entrevistadas, bem como nas manifestações culturais e nos lugares que eram referência para elas. Além do mapeamento já feito para o IPHAN e que em junho de 2024 estará disponível para consulta on line, informações mais atualizadas também são amplamente divulgadas e disponíveis em diversas fontes públicas – os grupos de folguedos possuem perfis em redes sociais, além de terem sido cadastrados pela FEMAC em 2020, mas há ainda as associações como FOCUARTE e ASFOPAL, que mantém o cadastro dos brincantes e artesãos de todo o Estado atualizados e disponíveis. Pelo curto tempo para a execução do projeto (3 meses), assim como pela dispersão dos moradores pela cidade e região, ao que tudo parece, será mantido o já conhecido modus operandi da Diagonal: serão buscados dados já existentes, entregues para a Braskem, que por sua vez os entregará ao MPF, desta vez, com a chancela da universidade e da participação popular e não mais pela Diagonal. Enquanto isso, as pessoas que foram diretamente afetadas na cultura estão à míngua desde que tiveram que deixar suas casas, sem conseguir dar continuidade aos grupos dos quais faziam parte de forma digna.

O que ainda pode ser feito?

  • TOMBAMENTO URGENTE do que resta, mas incluindo tudo, ruas, praças, entre outros, conforme pedido protocolado junto ao IPHAN em 2023 (e considerado pelo Ministério Público somente em abril deste ano – https://www.mpf.mp.br/al/sala-de-imprensa/noticias-al/mpf-e-iphan-discutem-tombamento-provisorio-em-areas-afetadas-pela-mineracao-da-braskem/)
  • Projetos na área de REGISTRO DAS MEMÓRIAS das pessoas, que contem suas histórias de vida, de forma que a MEMÓRIA não seja utilizada como “lembrança”, como coisas que se guardam e se retiram de uma caixa quando bem convier à Braskem. Além de estar entre os Direitos Humanos, o direto à memória integra os ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ONU, 2015). E há muitas pesquisas nesta área em andamento ou já realizados por pesquisadores que não estão sendo pagos pela Braskem, como os projetos sobre “patrimônio sensível”, que é o termo utilizado para se manter VIVA a memória de tragédias e histórias traumáticas como a de Maceió. Projetos de educação em direitos humanos também podem contribuir para a efetivação do direito à verdade e à memória. Acontece que contar a tragédia não interessa à Braskem, porque ela trabalha para o apagamento da nossa existência e memória.
  • REPARAÇÃO/INDENIZAÇÃO/RESSARCIMENTO de todos os fazedores de cultura destes bairros afetados por sua mineração irresponsável. Nada além disso, é o que resta! e parar com as demolições. Porque de resto, contar a história do que havia lá, por meio das pessoas que estão vivas, é uma coisa A SER FEITA MAS NÃO PELA BRASKEM. É por nós, pela comunidade afetada, pelas Instituições de Pesquisa , por meio de editais públicos (e não pagos pela Braskem), como a exemplo do Projeto Cidade de Afetos, criado pela arquiteta e urbanista Isadora Padilha, com recursos da Lei Aldir Blanc em 2021.

Portanto, qualquer coisa fora dessas três ações prioritárias em relação ao patrimônio desses bairros é pura enganação da Braskem.

*Bióloga, doutoranda do SOTEPP/UNIMA

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