24 de julho de 2021 11:43 por Geraldo de Majella
Esperei passar alguns dias do falecimento do juiz de direito Jerônimo Roberto Fernandes dos Santos, para prestar-lhe uma modesta homenagem pública. A nossa relação não era de amigos próximos, mas nos conhecíamos desde o início da década de oitenta, quando éramos estudantes ‒ ele cursando direito e eu, história. A ditadura militar havia sofrido alguns reveses eleitorais, mas ainda não dava sinais de esgotamento, o que aconteceria alguns anos depois, em 1985. O movimento estudantil era uma força política em ascensão que organizava manifestações e greves nacionais contra a ditadura.
O curso noturno de direito do Cesmac possibilitava aos que trabalhavam e moravam no interior bacharelar-se em direito. O perfil político-ideológico dos estudantes era conservador. A militância estudantil de esquerda tinha pouca penetração e sofria hostilidade e, no mais das vezes, ameaças. Policiais e agentes dos órgãos de informação costumavam cursar direito para ascender em suas carreiras.
As principais lideranças do curso eram o bancário Claudionor Araújo e Everaldo Patriota; ambos mantinham relações de proximidade com as lideranças do movimento estudantil mais à esquerda. É nesse contexto que aparece Jerônimo Roberto, um jovem com o perfil político-ideológico conservador, que fez oposição ao grupo que liderava o movimento estudantil no curso de direito, encabeçando uma das chapas para o diretório acadêmico. Perdeu a eleição para Everaldo Patriota.
O Brasil é redemocratizado com a eleição de Tancredo Neves e José Sarney; a Nova República torna-se uma realidade com uma nova ordem constitucional que emerge da Assembleia Nacional Constituinte em 1988. Nesse período, Jerônimo Roberto estava advogando. Anos depois, é aprovado no concurso de juiz de direito. A magistratura, que era o seu sonho de vida, passou a ser uma realidade.
Alagoas, na década de noventa, sofre a debacle política, econômica e administrativa. O Estado passou pelo processo de insolvência financeira, e dos escaninhos da segurança pública emerge uma poderosa organização criminosa que a imprensa logo denominou de Gangue Fardada, por contar com policiais e ex-policiais. Esta onipresente organização passou a operar em várias frentes, até mesmo realizando a segurança pessoal do governador, além de executar crimes de mando, cobranças de dívida para agiotas, controle do transporte alternativo etc.
A segurança pública estava completamente desestruturada; a hierarquia e a disciplina, que são os pilares das corporações militares, estavam esgarçadas. O medo não era expressão imaginária; era, talvez, o melhor conselheiro dos membros dos três poderes da República e do Ministério Público em Alagoas.
O ponto fora da curva foi o juiz Jerônimo Roberto, que ao se sentir desrespeitado na comarca de Santana do Ipanema ordenou a prisão do líder da Gangue Fardada, o então tenente-coronel Cavalcante. Esse fato, por temerário, era impensável de acontecer no Judiciário alagoano. Muitas vezes não é suficiente para o magistrado querer fazer cumprir a lei; é necessário ter coragem pessoal. A coragem pessoal para o agente do Estado não pode ser um pré-requisito, mas uma faceta da personalidade do indivíduo. O juiz de direito Jerônimo Roberto colocou a sua cabeça a prêmio num período histórico em que o Estado estava esfacelado. Não é exagero dizer que se achava dominado por essa organização criminosa.
Esse ato extremamente corajoso, diria quase tresloucado, do juiz de direito Jerônimo Roberto foi um indicativo de que não haveria alternativa senão a união do Poder Judiciário e do Executivo para conter o líder da Gangue Fardada na prisão, o que de fato aconteceu. O start havia sido dado.
A história tem seus caprichos, não depende apenas de ações individuais para que ocorram mudanças significativas; a partir de um ato, outros podem ser desencadeados. É importante lembrar que se deram mobilizações sociais. A imprensa local e nacional realizou a cobertura e contribuiu para a amplificação das denúncias de violências.
A história de Alagoas tem revelado agressões ao Poder Judiciário. A mais recente vítima foi o juiz Jerônimo Roberto, que, em consequência de suas decisões funcionais, juntamente com a sua família foi obrigado a viver sob a proteção policial.
A morte prematura do juiz Jerônimo Roberto, vítima da Covid-19, me faz relembrar esses fatos históricos. O estado de Alagoas e o Poder Judiciário, em particular, por certo ainda não têm a dimensão exata desse magistrado. O reconhecimento do seu papel na História será realizado post mortem.
Meu caro Jerônimo, que a terra lhe seja leve